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no século 19, um navio atravessou o oceano carregando um tesouro até então desconhecido: as maravilhas do brasil. para spix e martius, os pesquisadores responsáveis pela coleta dos espécimes, se transportava um jardim de maravilhas, um terrário preparado com cuidado. os dois transplantavam, fervorosos, reverentes, para deleite do mundo dos homens e das mulheres e de crianças e de outros estudiosos e do rei, exemplares da flora e da fauna brasileiras… entre eles, duas crianças. levadas contra a vontade, sofrendo no porão do navio, com seus gritos aflitos ao lado de animais, da fome e da sede.
esse é o mote do livro o som do rugido da onça, de micheliny verunski. essa expedição, essa coleta, esses pesquisadores realmente existiram, essas duas crianças realmente foram extraviadas de suas terras, de seus parentes, e a escritora, depois de ter contato com a história, decide tecer sua narrativa.
apesar de ter um pano de fundo histórico, boa parte do que a micheliny verunski conta nesse livro é ficção. isso porque pouquíssima coisa foi registrada sobre essas duas crianças. a principal referencia talvez tenha sido os diários dos dois viajantes, que realmente existem e realmente contaram parte do que aconteceu com as crianças na europa, mas várias passagens são inconsistentes, trazendo informações contraditórias, datas que não fazem sentido, rasuras mesmo. e pesquisas sinalizam que talvez essas mudanças nos registros tenham sido feitas justamente para esconder esse crime que foi cometido.
o papel, a escrita, o registro têm uma função muito importante no texto, porque essas rasuras significam muito para que se conte uma história oficial. quem tem direito a se escrever o que se quer? o que muda quando alguém tenta reescrever o passado de uma forma que não aconteceu? o som da rugido da onça é uma forma de refletir sobre um discurso científico que trata certos povos, certas pessoas, certos lugares com desrespeito, como se essas populações fossem apenas objetos de estudo, o que acontece ainda hoje. não só nessa prática, né, do exercício da história enquanto discurso, mas numa teoria, num simbolismo também. é pelas rasuras que ladrões de crianças, negociadores de pessoas, se tornam cientistas renomados ou heróis célebres. o que está se tentando apagar quando se dá um documento, um outro nome, um novo sobrenome a uma criança? o que é apagado quando iñe-e se torna isabela? o que significa nesse contexto de escrita utilizar a palavra DESENCANTAMENTO no lugar da palavra TAXIDERMIA, por exemplo? sem palavra ninguém pode ser gente, então essa preocupação com a palavra, o vocábulo, o sentido, tanto no nível do enredo quanto no nível da forma são grandes qualidades mesmo da micheliny verusnki nesse livro.
se essa historiografia hegemônica é questionável ou mesmo é rasa, coube à autora imaginar o que poderia ter acontecido, ou o que provavelmente aconteceu, com crianças de certa forma frágeis, num clima totalmente diferente, distante de relações e parentescos fundamentais para eles, longe do ambiente, longe da familiaridade, longe de qualquer ideia de mundo e natureza que eles haviam tido até então. distante, na verdade, de qualquer entedimento de mundo… por exemplo, numa cena, a gente entende que… entre os parentes da menina iñe-e, era preciso ser bem mais velho e experiente para ser considerado alguém com ciência das coisas deste e de outros mundos, então como aqueles dois homens, os dois pesquisadores, poderiam ser capazes de grande sabedoria? a menina percebia que eles eram mais gentis do que todos os brancos violentos e estúpidos que ela conhecera até então, mas, ainda assim, desconfiava. alguma coisa parecia errada. em outro momento, durante a própria travessia no oceano, a gente vê a narração estranhar o fato de animais e crianças morrerem e serem jogadas na água sem nenhum tipo de ritual que possibilitasse, que facilitasse que elas encontrassem suas terras, seus ancestrais novamente.
essa é uma história contada entre as rachaduras da história, é uma forma de escrita que opera no decolonizar, no desnaturalizar o que a gente acha que é da ordem natural.
e não só em relação às crianças – o livro utiliza uma polifonia muito interessante para tratar dessa situação, propondo pontos de vista que as vezes concordam as vezes discordam entre si. da rainha que cuida da menina, do rei que comprou as crianças, a empregada do palácio, religiosos, cientistas. os proprios dois viajantes tem visões um pouco diferentes em relação ao que eles fizeram. na verdade, até mesmo o iñe-e e juri se comportam de modos diferentes, lidam com esse novo país, reagem às pessoas e aos conflitos de maneiras distintas, o que acaba afirmando a questão do indígena não como identidade. né. identidade no sentido de fixidez, rigidez, ser único. existe diferentes modos de ser indígena.
o livro evoca também algumas cosmologias indígenas para dar conta de contar essa narrativa de outras maneiras também. a nossa cultura tem o conceito de história e de ficção muito bem amarrados, mas as coisas se embaralham quando a gente insere narradores que enxergam o mundo de um modo diverso, inclusive narradores não humanos, como a água, como a onça, como seres encantados. isso com certeza exige muita responsabilidade, muito cuidado, muita pesquisa – para descobrir as palavras que outros povos utilizam, traduzir os raciocínios, demonstrar esses outros saberes sem cair no didatismo nem no mero folclore. o que foi alcançado com exito.
esse livro com certeza é um livro urgente – e um dos ultimos capitulos do livro afirmam a gravidade do contexto indigena hoje. além de todos os narradores que presenciaram a história de iñe-e e juri, a gente tem uma personagem contemporanea a nós também, a josefa. ela está passeando numa exposição quando vê o retrato das duas crianças e se reconhece naquele momento. no brasil todo mundo é onça, exceto quem não é. e a partir daí ela começa uma jornada própria pra entender que rugido é esse dentro dela, o que desemboca na questão das reservas indígenas hoje, no contexto de um governo que não se preocupa com essas vidas, de uma política de morte institucionalizada. então, aparecem aqui o desmatamento, as queimadas, as grilagens, as invasões, a violência, os assassinatos de ambientalistas, a pandemia.
esse é um romance sobre mortes que acontecem há tempo demais e continuam acontecendo. sobre mortes que precisam ser interrompidas, porque só quem está vivo consegue escutar a voz dos animais, dos espíritos, das árvores, dos rios. as suas entonações, seus vocabulários próprios, suas palavras. mortes que impedem o escutar da voz do mundo, o entender da sua linguagem, seu rumor, os ermos, as luminescências das palavras. mortes que impedem a criação da arte, a exibição das plumangens, das cores. está na hora. quem está vivo tem obrigação de responder.