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trilogia do reencontro
botho strauss
tradução de alice do vale

temporal
220 páginas

leia a transcrição

vários amigos estão reunidos para a pré-estreia de uma exposição artística. a vernissage apresenta “realismo capitalista”, uma coleção de obras que presentifica o tempo dos anos 1970 em imagens. adultos simulam opiniões sobre o que pensam ou deixam de pensar. uma criança tira fotos das obras e das pessoas que caminham pelos corredores. um vigia permanece sentado, de olho nos visitantes, proibindo que comam ou fumem diante dos quadros. casais discutem a relação, solteiros paqueram uns com os outros. amigos se reencontram. e censores, bem, censores censuram.

trilogia do reencontro é uma peça de teatro montada originalmente em 1977. na sua primeira apresentação, causou receios e foi bastante criticada por não compreender necessariamente uma estrutura clássica – inicio, meio e fim, jornada do herói. são personagens demais e situações bem cotidianas, o que gerou a revolta do gosto burguês médio, reclamando de personagens com pouca profundidade psicológica, essa ausência de uma narrativa que ligue a história inteira e dizendo que tudo era bastante entediante, ou que o grupo estava banalizando a arte quando cria uma obra que não é panfletariamente política. com o tempo, porém, essa ideia foi sendo mais amplamente aceita, essa experiência de dramaturgia desdramatizada, novas referencias foram sendo consumidas e, desde então, trilogia do reencontro já foi montada oficialmente mais de 70 vezes, por companhias em toda a europa.

a ideia da peça é que o palco se transforme em uma das salas de uma galeria de arte e que as cenas transcorram na manhã, tarde e noite de um mesmo dia, mudando apenas a iluminação. e, à medida que os visitantes caminham pela galeria, vamos vendo pedaços de histórias, vislumbres de acontecimentos. então, os diálogos são recortados pela movimentação dos personagens, entrando e saindo dessa única sala a que o publico tem acesso. quando eles brigam, e saem com raiva. ou quando começa a chover e eles passam pra sair. mesmo a ideia de acompanhar a montagem de uma exposição é vaga para o publico, porque o publico conhece apenas alguns quadros da ideia inteira.

nisso, eu acabei, claro, não pegando muita coisa do contexto. e me sentindo confuso, pegando as coisas pelo meio. são muitos nomes de personagens e também citações a artistas que ora existem, ora não existem…. e ora a gente cansa de ficar lendo as notas de rodapé pra saber do que se trata cada obra que é citada. mas é realmente essa a intenção de certa forma. com essa estética, ele recria conversas superficiais, o que acaba sendo o próprio tema desse universo criado. a superficialidade é tanto o tema quanto o formato da peça.

fica latente nessas conversas sobrepostas, nesse vaivém de personagens, um mal estar, uma falta de pertencimento. e o discurso como a única forma de lidar com o mundo, como se a luta, a experiência concreta, não fosse mais possível, mas apenas o falar.

por ser uma peça sem drama clássico, que se afasta do formato mais tradicional, ela deseja representar não historias mas uma voz. é como se todos os personagens fossem uma voz coletiva que vai dar a aparecer alguns costumes e opiniões comuns naquela marcação temporal. o dramaturgo tentou capturar não um protagonista, um casal, um vilão. mas a voz coletiva daquela Alemanha pós-socialista, do fim do século 20, destroçada depois que as promessas capitalistas não se cumpriram. é uma descrição performática do status quo da época, meio sem objetivos e deslocalizada. estão aparentes ali: as opiniões rasas, a dificuldade de explicar as coisas e concatenar ideias, a insônia, a crença numa arte pura, os impulsos consumistas, as mulheres divorciadas ainda sendo diminuídas… uma das personagens inclusive diz que, quando se olha no espelho, não encontra nada que ela já não tenha visto em mil outras faces. outra vai falar que manter a coluna ereta é um desvio da natureza, porque nossas cabeças se voltam naturalmente pra baixo. o ser humano não deveria ter a expectativa de se erguer, mas devia aceitar que é um animal rastejante.

a obra vai, então, registrando as angustias, os desejos, as ansiedades de uma classe talvez media, preocupada com a arte, mas também distante de alguns outros problemas sociais mais graves, como o desemprego e a fome. a peça vai retratar então uma jovem burguesia presa em contradições, que lutou contra a mentalidade pragmática dos pais, contra a continuidade de um pensamento conservador, e que vê seus ideais esbarrando na repressão policial do que era pra ser um projeto social democrata. esses personagens tem um olhar crítico, mas que também é melancólico e triste. é um lugar tanto que pessoas que acreditam numa transformação social profunda quanto estão com suas subjetividades danificadas, todo mundo frustrado, decepcionado, beirando os alienados. são pessoas que não sabia mais como impactar o estado social, porque o que esse estado gerou foi justamente eles mesmos, gente triste. gente que tem seus limites e seus encontros marcados por um tempo sem muita esperança.

em certa medida, vocês conseguem deslocar esse pensamento pro brasil pós-2013? as jornadas de junho foram feitas por pessoas que acreditavam com todas as forças que poderiam mudar o país, mas que, no fim, tiveram como sintoma a frustração que as impede de acreditar nisso daqui pra frente. resguardadas as proporções, essa atmosfera da peça lembra muito o brasil sendo colhido pelo poder político autoritário, pela força do dinheiro que transforma até os ideais políticos em mercadoria, por essa colaboração política-economia que anula o que há de valor em experiências singulares e passa a se valer de abstrações que homogeneízam o povo.

o mais interessante, porem, vem de um personagem especifico. o escritor peter, uma homenagem do autor ao amigo peter handke, que inclusive venceu o nobel em 2019. quarenta anos depois da escrita dessa peça. ele vai ter um papel meio didático meio provocador dentro desse grupo de amigos, porque a ele são feitas questões filosóficas em varias cenas e, em outras, ele deturpa o assunto e mete uma reflexão interessante no meio, principalmente em relação a arte.

ele vai se colocar, enquanto escritor, enquanto artista, como aquele que pode oferecer novas formas de vida. é o artista que convoca à agitação, à violência, que distribui sentimentos, extrai lagrimas, risos, desejos, força. em contrapartida, ele também se declara alheio ao mundo, ele escreve, como ele vai dizer, “sob a proteção da distancia”, o que acaba não gerando efeito algum, suspiro algum de nenhum personagem.

é curioso pensar que, nessa globalização do mundo burguês, nem a arte nem o amor oferecem mais saídas ou rotas de fuga que alterem radicalmente essas vidas. isso descamba em outro tema que a peça levanta, que é a censura.

aqui ela é expressa por um governante que rejeita a exposição porque uma figura presente em um dos quadros se parece com um político específico. esse quadro acaba permitindo interpretações diversas e é visto pelo censor como uma crítica direta ao governo. mas numa democracia não existe censura, então é interessante acompanhar os rodeios que esse político fará para cancelar a exposição sem precisar deixar evidente a ideologia política por trás desse ato. diante disso, inclusive, sem querer dar spoilers, esse marasmo dos personagens também fica bastante aparente. a aceitação, o medo de confronto. enfim. não vou falar mais.

trilogia do reencontro é uma peça de leitura confusa, mas que permite muitos pensamentos em relação a uma renúncia da ideia de progresso, uma renúncia da ideia até de linearidade temporal. é uma obra muito interessante para pensar a retomada de uma percepção humana de mundo e também as formas que a comunicação se torna inviável nas condições de uma sociedade capitalista. pensar no tempo que essa obra foi escrita e perceber tudo permanecendo atual só reforça a melancolia que esses personagens sentem e nos fazem compartilhar dessa experiência de um mundo desarticulado, que conversa por lacunas, mas que ainda sonha com a superação dessas lógicas.

porque criar uma estética triste não é compactuar com os vencedores da história, mas uma forma de declarar a podridão que existe em todos os monumentos banais da vitória deles.