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ricardo terto tem um leve afundamento craniano na nuca. ele sempre se lembrou da mãe contando que ele nasceu de fórceps, então o procedimento médico, o fato de ter sido puxado por uma ferramenta, criou essa pequena deformação. ele sempre contou essa história para os amigos, a história de que seu próprio nascimento foi uma violência, sua primeira interação com o mundo já lhe causou uma marca eterna, seu contato inaugural com a vida já lhe tolheu de cortar o cabelo na maquina um para a vida inteira, porque o vale fica mais evidente e, enfim. um dia, puxou o assunto com a mãe e ela o corrigiu. ele nasceu num parto normal, sem qualquer complicação. fora sua irmã quem nasceu de fórceps. ele tentou relutar, dizer que não, tinha certeza que fora ele, o afundamento na cabeça confirma. a mãe retruca. não faz sentido ele querer saber mais que ela. provavelmente, ele ouviu essa historia pela metade, ligou os pontos, criou sua teoria e espalhou por aí.
Quem é essa gente toda aqui? é um livro sobre viver a pandemia na internet no Brasil 2020. ou, o que ricardo terto chama, no terceiro mundo digital. com certeza, esse livro foi uma das coisas mais interessantes que li nos últimos tempos, principalmente sobre a pandemia. o terto tem um olhar único, atento, detalhista, e consegue ligar diversos assuntos que a gente tem debatido por aí com muita inteligência e humor.
o livro está cheio de comparações e analogias muito eficientes para explicar como a gente chegou onde a gente chegou e o que é estar nas redes sociais nesse país. é tudo muito original, mas também gera total identificação. internet é a porta do banheiro público onde todo mundo pode riscar. é o fliperama onde você bota a ficha do jeitinho que consegue puxar ela de volta para jogar mais de uma vez. é a fechadura digital que você não entende tão bem. é uma galinha botando ovos que não sabe pra onde vão. é um ataque de rinite.
já começa com essa história sobre seu parto – ou sobre o parto de sua irmã. essa analogia sobre ter perdido a própria historia, a própria certeza, o sentimento de negação – é muito característico de um grande que fomentou um tipo de debate negacionista frente a pandemia nos últimos meses. mas o brasil 2020 é isso. é essa turma que acredita ter descoberto uma nova ordem mundial, que vai implantar chips em todas as pessoas por meio da vacina, que vai transformar os genes de todo mundo, que usou uma doença para implantar o comunismo. e há quem acredite que essa turma pode ser convencida com números, gráficos, barrinhas coloridas numa tela e entrevistas com cientistas renomados. a disposição de quem escreve o centésimo artigo sobre como o bolsonaro é muito bolsonaro.
e, isolados, cada um em sua casa, ou quase isso, a internet se torna palco de tensões e questões que vão ser comentadas nesse ensaio bem breve, de 50 e poucas páginas.
as redes sociais, onde cada pessoa tem uma linha do tempo particular, criada de acordo com seus hábitos de consumo, é uma forma muito específica de desorganização. mas, quando a gente coloca o brasil nisso, as coisas ficam ainda mais trágicas e surreais. o terto vai comentar isso, sobre a internet no brasil estar inundada do óbvio, pessoas dizendo o óbvio o dia inteiro: mascara é pra usar no nariz, vacina protege, temos realmente capacidade de parar tudo por duas semanas se as elites financeiras e politicas quiserem, o meio ambiente não aguenta mais, vidas negras importam. e é preciso defender o obvio o dia inteiro, porque muita gente acredita justamente no oposto e não aceita mudar o ponto de vista.
a gente entende que perder uma historia tem uma força desnorteadora, é como perder o controle da própria vida, perder um direcionamento, um estabelecimento das coisas. pouca gente quer se desconstruir, se reconstruir, se recosturar. a gente quer permanecer confortáveis em nossas próprias certezas. e a partir daí haja piada ruim, pronunciamento covarde, discursos genocidas, spams com lições que os astros trazem a pandemia, polemicas de 2016 sendo ressuscitadas para atacar alguém.
a internet no brasil se tornou um lugar desconfortável, de ataques ansiosos. saímos de fazer algo para o tempo passar e entramos no fazer algo porque o tempo está passando. nos prometeram liberdade de expressão, mas recebemos marcas se disfarçando de adolescentes. internet não é mais lugar de distração, mas de produtivização de tudo, de gerar mais impossibilidades, mais frustrações.
é muito extenuante viver o brasil porque exige um esforço mental muito grande enxergar os pactos sociais que estabelecemos aqui, participar de uma hipocrisia ritualizada cotidiana. um país bonito, mas estranho. desigual, porem abundante. e a hipótese que o ricardo terto vai levantar é a de que parece as vezes que a única forma de lidar com isso, então, é o humor. uma busca por um entretenimento catártico, muitas vezes maniqueísta, que nos ajuda a suportar a demanda emocional que significa morar aqui. internet é meme, é gambiarra, é um prego no chinelo que se assume um sobrevivente. mas internet também é esse chinelo entrando na frente de proposito pro outro tropeçar. o brasil é pioneiro na arte de criar acessos, mas também é cruel na hora de criar códigos que impedem que algumas populações participem da vida juntos.
QUEM É ESSA GENTE TODA AQUI? também insere em si as questões da acessibilidade nesse país. quem tem direito a opinar, tuitar, dar like, se tornar influenciador? quem tem direito a assistir uma live, uma reunião, a aula por videoconferência? quem tem direito a ficar em casa, trabalhar de casa? quem tem direito a casa?
por mais que o feed das redes sociais seja atualizado dezenas de vezes por minuto, as transformações politicas mais profundas, aquelas que tiram as pessoas da miséria, da falta, da fome, acontecem muito aos poucos no brasil. o comentário sobre as noticias se encaixam num tempo curto, que não se compara com o tempo das votações, dos mandatos, da escrita de projetos. a internet ainda vive em descompasso com a politica macro. ter acesso digital não significa necessariamente o aceito a conceitos complicados, a equipamentos de boa qualidade, a todos os espaços importantes e discussões qualificadas. da mesma maneira que ter acesso a informação não torna alguém bem informado. o ambiente digital no brasil apenas reproduz online dinâmicas, apagamentos, questões históricas. redes sociais como redes de poder e dominação. a precariedade é o mais longo e bem sucedido projeto do nosso país. a maior parte do brasil só consegue ter acesso às coisas quando entra pela rachadura. e uma das consequências disso é que a noção do todo deixa de importar: quem entra pelas frestas não consegue ver a imagem inteira, ampla. quanto mais complicado o problema, mais atraente se torna a resposta simples. no fim, ganhou quem conseguiu planificar seu discurso para chegar a mais pessoas, ser mais compreensível, gerar mais pertencimento em torno do discurso em uma rede mais aberta possível, com menos muros, senhas, anúncios.
o que salva no fim é o micro. é o ímpeto humano de se conectar. foi isso que criou a internet e vamos continuar nos conectando mesmo que a gente não entenda tão bem todas as ferramentas a que temos acesso hoje. romper as redes de desanimo, de simulação de pertencimento. criar espaços onde é possível a colaboração humana, porque é só ela que vai conseguir vencer o horror tecnológico neoliberal, a memetização da política, a memetização da morte e da doença.
QUEM É ESSA GENTE TODA AQUI? é sobre isso, sabe. sobre como é fácil fazer piada, compartilhar uma manchete sem ler a noticia, usar a figurinha do fique em casa numa foto de festa com doze amigos. há quem tenha desistido do isolamento pela própria saúde mental. há aqueles que nunca tiveram a possibilidade de desistir pela própria boca que sente fome, pelos próprios exames, pela própria casa de aluguel, goteira, córrego, polícia chutando porta, boleto, aluguel, falta de merenda, chantagem do chefe, chantagem do presidente, enchente, violência domestica, invasão às próprias terras, cor da pele, cep, cpf, spc, tristeza, abuso, humilhação, raiva, desanimo coletivo.
talvez a ideia mais perigosa no brasil de hoje é a ideia que não temos mais nada a perder. e a cada dia descobrimos uma nova perda.