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pequena coreografia do adeus
aline bei

companhia das letras
264 páginas

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a primeira cena de pequena coreografia do adeus é uma cena de batismo. em um segundo, júlia brinca com uma boneca. no momento seguinte, júlia tem nas mãos sua filha, nádia m. não é tão somente o batismo de uma boneca que se torna filha, mas o nascimento também de uma mãe. júlia está se projetando numa mulher mais velha e, ao mesmo tempo, desafiando aquela imagem da mãe sempre ocupada, sempre angustiada com a própria existência, sempre usando a filha como plateia para sua apresentação de angústias. é quando vê, do outro lado da praça, seu pai. sorrindo. estranha, porque seu pai não sorri dentro de casa. júlia não sabia que seu pai tinha tantos dentes. júlia não sabia que seu pai podia se tornar tão leve. nunca havia visto ele flutuando como estava flutuando ali, a dois palmos do chão, as mãos dadas com uma mulher vestida de ouro. no mesmo dia em que nasce, se batiza, amadurece, julia descobre a traição, a cobiça, o ciúme.

essa primeira sequência de acontecimentos de pequena coreografia do adeus é narrada com a mesma precisão de o peso do passáro morto, o aclamado livro anterior da mesma autora, aline bei. esse livro fez sua escrita ser reconhecida, elogiada, premiada tanto pela crítica especializada quanto pelo público. quem espera uma narrativa parecida, pode gostar mas tambem pode se decepcionar, porque a autora conserva alguns traços do livro anterior mas também inova ou subverte algumas coisas.

pra começar, pelo que tem de parecido… a gente ainda tem um enredo triste, com comentários cortantes. a escrita ainda é meio árida, meia seca, que tenta tirar o ar de leitor. o modo como a autora cria imagens tem um pouco das técnicas da poesia e da dramaturgia. nessa cena mesma que eu contei, essa sensação de ciúme é descrita como uma vontade de mastigar aquele casal. já a raiva diante da traição, é mostrada com julia se imaginando confrontando o pai e o obrigando a dizer que ainda ama a filha. que não vai a abandonar. em outra cena, quando a júlia experimenta um abraço bom, ela sente uma vontade de dormir.

todas as dinâmicas familiares e a dor da protagonista em relação a elas não é poupada, a aline bei opta por tornar tudo bem visível, mas não exagera sempre no grafismo. a gente entende bem essa relação controversa entre a mãe, que depois de ser ferida pelo antigo marido, começa a descontar as frustrações violentamente na filha, com gritos, agressões físicas, proibições. a gente tem esse pai, também, que é silencioso, soturno dentro de casa, mas que ganha uma vitalidade, uma juventude, como que para que a sua felicidade esbanjada incomode e chegue aos olhos da ex, para que ela se sinta pior diante disso.

e no meio disso essa protagonista, ainda imatura diante do mundo, ainda aprendendo a lidar com as coisas. a julia carrega o peso desse relacionamento que não é dela, mas não sabe ainda como se livrar da culpa, como abdicar dessa pressão. ela não sabe administrar esses conflitos dentro de si. a gente sempre ouve por aí que a família é um lugar de aceitação, de amor, de conforto, mas não é isso que ela vive. aquela é uma casa sem conversa, uma casa habitada por três solitários irreversíveis, gravemente feridos pela guerra que travam entre eles. não que eles sejam maus, mas porque são tristes. e é se machucando que essa família lida com a solidão.

esse conflito interno dentro da julia é bem expresso. essa casa como um lugar ruim, onde ela se sente deslocada, é como se ela vivesse também num não lugar. se aquela casa é um lugar onde não chove, infértil, inóspito, quem é ela? quem é essa menina que nasce num horizonte tão seco? o que pode nascer num lugar assim?

a própria idade da júlia também apresenta esse não lugar. ela é uma adolescente, que é uma idade ingrata, onde não se é nem tratada como criança nem tratada como adulta. o corpo da julia não é nem totalmente infantil, nem totalmente maduro. durante o livro a gente acompanha a primeira menstruação dessa protagonista, as descobertas em relação ao próprio corpo, o desejo de mudança, o deslumbramento com o corpo feminino mais velho, com as possibilidades que representam, por exemplo, os seios grandes de mulher madura que enxerga na mãe. e isso representa tanto uma emancipação – a possibilidade de amar, a possibilidade de desejar e ser desejada – como também um dilema. ela sente medo de também ser abandonada pelo pai por estar cada vez mais parecida com a mãe. em uma cena, por exemplo, ela diz que arrancaria os olhos fora se isso a distanciasse dessa mulher traída. em outra, sente vontade de chutar a boca de quem a diz que ela se parece com a mãe. em outra cena, ela anda com os joelhos encolhidos, como se pudesse não ser vista, se diminuir, parar de crescer.

depois de um salto no tempo, numa segunda parte do livro, a gente acompanha a julia mais velha, com vinte e poucos anos, lidando com esse sair de casa pela primeira vez, ainda tateando o mundo, ainda imatura. ela tenta viver sua própria vida, abraçando o primeiro emprego, conhecendo pessoas novas, investindo seu tempo em uma nova fauna de personagens fora de casa – a dona do café onde trabalha, o filho da patroa que mora em outro país, a argentina que administra a pensão onde vive, um pugilista aposentado que frequenta seu trabalho… há ainda alguns interesses românticos, com os quais ela se envolve ora com afinco, ora com medo. ela tateia o sexo com medo do que ele pode significar, pensando ainda no relacionamento difícil dos pais.

em cada um desses personagens habita uma despedida diferente – despedida de sonhos não realizados, de pessoas deixadas pra trás, de casamentos que não acabaram bem, mudanças de vida, de cidade, de país, de carreira. enquanto na primeira parte a julia é uma personagem introjetada nessa casa, nessa família, agora ela ganhar o mundo inteiro – mas continua sendo meio passiva em relação a tudo, admirando essas pessoas, assistindo o movimento da rua pela janela do seu quarto. a julia tem um olhar sensível para a vida dos outros, admira cada existência pequena, e vai conseguindo aprender um pouco com cada segredo de cada personagem que cruza consigo. os passados dessas pessoas vão sendo casualmente revelados, mostrando que todos tem a sua dor, o seu trauma, mas que resistem apesar de tudo. se antes o divórcio e a violência a quebraram, fazendo a menina dar conta de que toda relação no futuro seria fruto dessa quebra da inocência, agora, a julia vai percebendo que é possível existir amor, relação, cumplicidade em formas diferentes de vida, de família, de casamento.

parte dessa reflexão da protagonista, passa pela mentira mas também pela ficção. se na infancia a julia mentia para amenizar as invasões e para ganhar privacidade, na juventude ela começa a usar a escrita como forma de elaborar o próprio sofrimento e o próprio passado. um diário, um caderno se torna uma escuta silenciosa, atenta e quente, sempre receptiva à dor da julia. é nele que ela começa a se entender e alguns trechos coletados ao longo da narrativa mostram que nascem ali possibilidades de vida, caminhos pode onde ela não desviou, decisões que ela ainda irá tomar. um dia, talvez num futuro depois do fim do livro.

pequena coreografia do adeus ganha esse ar de romance de formação, ou até de uma jornada de heróina, quando a gente percebe que temos uma mulher que sonha, apesar de toda a violência que a acompanha, que retumba ainda na sua cabeça, na sua memória. a narrativa caminha numa crescente em direção a um final feliz. o livro é interrompido, na verdade, um pouquinho antes do final feliz realmente acontecer, mas a percepção das armadilhas que o medo da solidão coloca ela, já é um caminho. apesar de não ser exatamente um desfecho feliz pleno, é um caminho pra ele. até porque, ainda estamos no começo e a vida não se resolve em um dia só. talvez essa seja a maior distância entre os dois livros, o desfecho, o rumo das coisas.

quem acabou estraçalhado pelo livro anterior da autora e gostou da experiência justamente por isso, vai se deparar aqui com uma finalização bem mais leve, um caminho para a reconstrução dessa jovem júlia. o primeiro livro tinha um panorama grande de uma mesma vida, enquanto esse é focado no desenvolvimento de uma personalidade, num momento de formação mas sem que a formação ainda tenha realmente ocorrido – as questões que o livro levanta são limitadas pelo recorte temporal da narrativa, por essa protagonista garota, adolescente, jovem. são mesmo proposições diferentes aos leitores, o que é corajoso e fica bem interessante.

me incomoda um pouco algumas escolhas de enredo antes do fim. alguns acontecimentos são meio improváveis, outros convenientes. alguns indícios, pistas, comentários sobre a aleatoriedade da vida estão presentes desde o início do romance, mas alguns acidentes, relacionamentos, descobertas, principalmente perto do fim do livro são meio acelerados, outros soaram meio exagerados.

mas, com certeza, ainda é um bom livro, ainda é aline bei. a narração convence, a voz é plausível, a dor é presente, e com certeza é possível que o leitor acabe, ao fim desse livro, se revirando em silêncio e se sentindo menos só e, no melhor sentido da expressão, o sentido que julia terra dá, esse vai ser um livro que vai dormir com quem lê.