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copo vazio
natalia timerman

todavia
144 páginas

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uma mulher de 44 anos e sua filha de 9 anos de idade. mirela sai com a criança em um braço e a sacola de compras no outro. elas pegam um carrinho na entrada do supermercado e mirela coloca os óculos para enxergar a lista de compras. molho de tomate. iogurte. sabão em pó. e, logo ali, no corredor de produtos de limpeza, enxerga um homem. uma imagem embaçada que logo começa a tornar contornos mais nítidos. o corpo menos magro do que antigamente. a cicatriz do lado esquerdo do rosto, acima da barba. o cabelo grisalho, guardando só resquícios do loiro que foi. rugas na testa, no canto dos olhos, as marcas desconhecidas na pele — ela também as adquiriu desde a última vez que se viram. e então, os olhos, vistos por último, confirmam o que ela já sentia. Pedro. o homem que um dia amou e que não via há tanto tempo. os dois trocam duas ou três frases como meros conhecidos e, então, aquele instante permanecerá novamente em silêncio.

copo vazio é o primeiro romance de natalia timerman, uma escritora já experiente, que também já lançou um livro de não ficção e um livro de contos. e realmente expressa toda sua maturidade nesse livro. escrito de uma forma elegante, sensível, muito bem amarrada. ela sabe alternar muito bem os momentos de drama e os momentos de alegria, intercalando a cena e criando escritas diferentes para mostrar algumas lembranças agradáveis e outro fraseamento, mais rápido, para demonstrar o pensamento mais confuso ou desesperado da protagonista.

o livro começa com exatamente essa cena. um homem e uma mulher que um dia se gostaram se reencontrando por um minuto. ela, com marido e filha. ele, nunca sabemos. ele é apenas um homem comum, que compra amaciantes e que um dia, no passado, a abandonou.

logo depois, a narrativa retorna no tempo, à juventude dos dois para mostrar como ele se conheceram. a irmã de mirela a encorajou a instalar um aplicativo de namoro e criar um perfil. ela começa desconfiada, desconfortável com essa prática de colocar fotos suas numa vitrine, como se fosse um produto. mas, logo conhece Pedro, os dois se interessam, desenvolvem conversas e o relacionamento caminha.

tudo acaba tão abruptamente como começou, como se eliminar alguém da vida hoje fosse tão fácil quanto instalar e desinstalar o tinder. Pedro desaparece, dá um perdido. copo vazio é um livro sobre o ato de ghosting. sumir da vida de uma pessoa sem dar explicações. o livro vai retratar muito bem essa ambiguidade presente na forma como dois estranhos puderam se conhecer, se relacionar, terem a comunicação possibilitada, mas também mostra como as redes sociais, o celular, o aplicativo coloca em cena e permitem outras formas de descaminhos, de desencontros também. no caso de mirela, três meses depois do primeiro encontro, Pedro para de responder suas mensagens, mesmo que visualizasse. quando ela passa a cobrar explicações, ele a bloqueia em todas as redes sociais.

a partir daí a gente começa a acompanhar toda a espiral em que mirela se insere, entre obsessões, lembranças, dúvidas, imaginações. primeiro, vem aquela sensação de mandar uma mensagem e ser ignorada. visualizada e não respondida por três, quatro, cinco vezes. ela começa a pensar que a culpa é sua, tenta imaginar alguma coisa que falou no último encontro, ou alguma súbita mudança que aconteceu nas últimas semanas que se viram, alguma palavra afiada. ela tenta se valorizar, mas acaba entrando em momentos de baixa auto estima e, depois de desespero: criar contas fake, adicionar pessoas da família, observar de longe. às vezes ter certeza do que aconteceu, às vezes ficar imaginando por onde ele andaria já que nunca mais se esbarraram por são Paulo.

o livro retrata muito bem o fim de um relacionamento, mostrando como é difícil superar um rompimento abrupto com outra pessoa. os momentos de só falar do cara com os amigos ou na terapia, as músicas que você ouve pra sofrer e lembrar de tudo, as broncas no trabalho porque está distraída, os sonhos imaginando todos os planos que vocês fizeram mas não realizaram. os cheiros, os objetos, os lugares. tudo contaminado. a memória colando unidades distintas e tudo que ficou servindo de provas de que ele realmente existiu. e então, o momento de jogar tudo fora, ficar bêbada, experimentar coisas novas, conhecer outras pessoas.

no fim, o copo vazio acaba sendo um grande chamado contra a romantização dos romances. essa frase ficou péssima, risos. digamos, um manifesto ou quase pelo fim dessa pressão e obrigação de narrativas românticas perfeitas. ou como elas podem pouco responsáveis. ok, eu estou muito confuso. o que eu quero dizer é que às vezes a gente se obriga a enxergar sinais pequenos e fatos casuais como se fossem destino, um grande sentido por trás da união daquelas duas pessoas. ou, a gente legitima mais as experiências das pessoas quando elas estão ligadas a um outro – como se uma mulher, um homem só estivesse completa se estiver dentro de um namoro ou casamento.

a gente está sempre precisando da confirmação do olhar dos outros, da palavra dos outros. a gente inventa uma ideia de destino, de predição, pra depois reclamar que o destino enganou a gente. e, quando essa confirmação de coisas que a gente já ouviu, já sabe não vem, a gente sucumbe, endoida, fica perdido, se sente mal por não estar comungando dessa grande experiência coletiva em torno do amor. ou desse tipo de amor.

copo vazio vai na contramão disso – e cria, na verdade, uma grande homenagem aos nãos, que possibilitaram transformações, mudanças, revisões, sementes.

a verdade é que pessoas negam, desistem, pessoas erram, somem, desaparecem e reaparecem. esse livro é uma jornada para entender isso. e, por mais que seja cruel com mirela, nem todos os rompimentos deixam explicações – mas todos deixam rastros, presentes, legados.

o que pedro deixou foi a certeza de que qualquer pessoa pode ir embora a qualquer momento.