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diário
ㅤㅤ ㅤda ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤtravessia

este é um registro pessoal e subjetivo da leitura do nosso editor de “grande sertão: veredas”, obra incontornável da literatura brasileira

grande sertão: veredas
joão guimarães rosa

companhia das letras
560 páginas

dia 1

Alguma gente, de tanto afirmar que este é um dos maiores romances da literatura brasileira (ou até o maior), me deu a parecença de que o falar de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, seria um empecilho para essa travessia. Chamam de difícil, complexo, complicado, estranho. Nunca havia me atiçado ou atentado para ler. Só me encorajei por causa de um curso de extensão. É ele o motivo da leitura e destes registros e entradas.

A primeira palavra do livro já é um enigma: nonada. Tudo segue turvo, um idoso lembrando sua juventude pra num sei quem, narrando seus enveredamentos como jagunço, amando um amigo com palavras bonitas como antes nunca visei. Não esperava, mas, tudo bem, é só o primeiro dia.

dia 2

Me rendo rápido, me entrego ao livro. E a dificuldade logo se transforma em fascínio. As marcas de oralidade não me deixam despregar os olhos das quinhentas páginas que jorram um rio só. Uma palavra puxa outra que puxa outra que puxa outra. Um menino que vira homem, Riobaldo que assume seu nome, o sertão em beleza, palavra sonora, Deus e Diabo de uma margem a outra, trajetória.

Tem sido uma boa jornada. Comecei a anotar umas coisas, marcar citações, redigir esse atravessamento pra dentro de mim mesmo. 

Sertão é o que não cabe em mim. 

Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros. Eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas. Longe, longe, até ao fim, como o sertão é grande...

dia 3

Grande Sertão: Veredas é um livro longe, onde as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Lendo eu vejo como no mundo cabe mundo. Travessia perigosa, mas é a da vida. O livro se alteia e se abaixa, a partir dos miúdos passos de Riobaldo. Coisinhas que ele vislumbra em ocasião de momento e que jamais esqueceu, com pena.

Para onde olha enxerga ou deixa de enxergar Deus e o Diabo. Logo nas primeiras páginas já fica claro esse conflito, essa simultânea sensação de abandono e abraço que a natureza traz grande em si. A vastidão do sertão é obra de quem, afinal? É a tranquilidade da casa e do abraço do amigo mas é também a guerra que arruma o mundo de outra maneira. É rico e seco, é chão e ventania, é conforto e violência. Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do céu.

dia 4

Travessia é entender Deus no próprio corpo, Riobaldo deixando de parte todas as dúvidas de viver e apreciando o só-estar.
É ver o Diabo fazendo oco no ânimo do mais valente qualquer, o medo conseguindo subir em qualquer jagunço.
Deus é o coração que bate no corajoso. Diabo é o chão sem se vestir.
O sertão te ajuda com enorme poder ou é traiçoeiro muito desastroso.

Guimarães Rosa descreve as paisagens de nossas guerras e vê o Diabo lá, mas ninguém pode o impedir de rezar. O existir da alma é a reza.

Sertão é onde vi o mundo fantasmo.

dia 5

Então, é aqui o dito sertão?

O situado sertão é os campos-gerais de fora a dentro.
Sertão é o fim do nosso rumo, são as terras altas.
Sertão é estes teus vazios.
O sertão é do tamanho do mundo.

Lhe falo do sertão, mas do sertão ninguém sabe. Falo do que não sei. Ninguém ainda sabe. Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.

Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte. O sertão é um estado dos cavalos. É o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pelo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão.

No sertão, até enterro simples é festa. Mas, no sertão, toda gente é calada.
Sertão é o barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro.

Sorte?
O que Deus sabe, Deus sabe.

dia 6

O mundo precisa que suas feiezas estejam bem convenientemente repartidas nos recantos dos lugares. Se não, a gente perde qualquer coragem. O sertão, contudo, está cheio desses recantos. Por isso que o mundo quer ficar sem sertão. Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! O sertão nunca dá notícia. O senhor tolere, isto é o sertão.

Quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto, mas está lá: o estatuto de misérias e enfermidades.

Sertão é borda.

dia 7

Diadorim e Riobaldo, os dois em passeio.

Conforme Riobaldo pensa em Diadorim, só pensava era nele. Esse relacionamento floresce, toma conta da travessia, gera preocupações e proteções. Aprendemos junto aos dois a apreciar belezas sem dono. Os sentimentos de Riobaldo vão-voam reto para seu amigo Diadorim ao longo de todos os abraços que duram o livro inteiro. Um abraço como as asas de todos os pássaros.

O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.

dia 8

Com o vento da seca, as árvores se entortam mais. Imagine então que a guerra é o constante mexer do sertão: esse parece um livro de pessoas boas, mas é de homens sistemáticos. É de toleima e confusão, de política e de brigas. Tudo política, e potentes chefias. No centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada. Sertão é a aspereza da vida.

O lugar sertão é onde os pastos carecem de cercas. É onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com uma casa sequer de morador. É onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de qualquer autoridade.

Ou seja, o sertão está em toda a parte.

Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.

dia 9

Sertão é quando menos se espera. Só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro.

Agora perdi. Estou preso.

dia 10

Pesquiso na versão digital do livro.
A palavra Sertão tem 164 ocorrências.
A palavra Diadorim aparece 651 vezes em Grande Sertão: Veredas.

Confirmo por esta análise rasa minha teoria. Este não é um livro sobre a guerra, sobre a seca, sobre viagem, sobre amadurecimento. É uma história de amor.

dia 11

É lógico que essa afetividade entre dois homens é perigosa e tratada como tal. Mesmo que ele se sinta só mole, moleza, mesmo que não amorteça os trancos dentro do coração, ele tenta ser rígido com seu querer. Riobaldo vinha tanto tempo se relutando contra o querer gostar de Diadorim mais do que se gosta de um amigo que acaba apurando uma vergonha de se entender num ciúme amargo. As vontades de sua pessoa estavam entregues a ele.

Porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam ao acaso, mas cada um é feito um por si. Diadorim e Riobaldo são diferentes e isso fica claro desde o início do texto de Guimarães Rosa.

Já ouvi falarem do final e sei que as coisas não são tão como são, mas ignoro. Diadorim e Riobaldo são juntos. Cúmplices. Como homem é que Riobaldo se confunde com os olhos meigos de beleza impossível de Diadorim. Seus tão bonitos braços alvos. Seu cheiro bom sem nódoa. Seu arrepio alvoroçado de doçura. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que não abria a boca, contudo, ainda apresentava o irremediável extenso da vida.

Diadorim é a sua neblina.

dia 12

Ao fim, o corpo traslada. Muito sabe, adivinha se não entende. O que importa é o resultado da vida. Amor vem de amor. Travessia. Hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber que sabia.

O Diabo não há. É o que digo, se for. Existe é homem humano. Viver é muito perigoso.

andre aguiar
é jornalista e pesquisador.