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tudo o que leva consigo um nome
francisco mallmann

josé olympio

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uma pessoa que esteve separada do mundo por bastante tempo comemora: finalmente instalarão uma janela nessa parede – para que ela possa ver a ponte, para que ela possa ver um caminho, para que ela possa relembrar como se foge. foi um tempo cansativo, mas, agora sim, parece que vai começar uma possibilidade de descanso.

francisco mallmann começa assim seu novo livro: há um sentimento de liberdade, puro, é uma boa notícia que parece encher alguém de alegria, alguém que já estava exausto de esperar por ela. até que os poemas vão se acumulando e o sentimento vai mudando – não é uma mera felicidade em encontrar uma estrada de volta, é algo mais. há um sentimento de revanche que vai se espalhando a cada fragmento.

tudo o que leva consigo um nome é uma vingança, uma reparação, uma restituição – são peças de uma história, memórias de um relacionamento que acabou, bilhetes enviados com muita mágoa para fernando, esse ex. quase tudo ali é sobre ele ou parece destinado a ele – o nome fernando aparece 133 vezes ao longo da história.

há uma raiva por saber de fofocas que fernando tem espalhado, um ressentimento pela forma como as traições se dão, uma revolta por não haver tanta maturidade entre as decisões. é o signo do rancor que move a escrita desse livro – uma forma de enfrentar as versões sobre quem é fernando: não há espaço para o fernando companheiro, romântico, aquele das memórias boas. quem narra não dá a ele o sabor doce de ser bem retratado. só sobra amargor.

a cada poema, texto, página, novos encaixes vão se formando até ganharmos noções diferentes da experiência de um fim. do momento do choro até a redescoberta das amizades, do trauma na memória até que se volta a acreditar no sonho e no futuro.

dentro do livro em si, os conflitos com esse processo de escrita também aparecem enquanto experiência. narrar-se é uma coisa que só quem tem poder consegue fazer, por isso a poesia é um desafio. a sinceridade, o mistério, a elegância – toda a técnica que envolve a escrita é questionada à medida que essa história avança. a arte se torna um modo de encontrar potência dentro de si, um grupo de artistas é a coisa mais perigosa que existe. quem narra aqui precisa se autorizar, encontrar dentro de si as permissões para romper com o que os outros tem dito. levar à frente a própria narrativa, construir uma espécie de versão dos fatos, a própria visão sobre os acontecimentos.

mesmo que seja uma versão cheia de lacunas, espaços vagos, saltos no tempo, versos quebrados, personagens sem grandes traços de personalidade, sentenças que parecem uma grande piada interna, com as referências ocultas para quem está lendo. tudo o que leva consigo um nome não está preocupado com as características de uma poesia narrativa tradicional e muito menos com as técnicas do romance moderno. o interesse aqui é mais mostrar a fluidez, a ambiguidade, a sensibilidade como possibilidades na hora de criar um enredo. não é preciso rotular o livro como poesia, novela, performance; não é preciso encaixar quem narra aqui em uma caixa de homem ou mulher; não é preciso ler tudo como um romance literal, de sentimento individual, um drama interno – mas também não é saudável enxergar metáforas e um sentimento coletivo diante da crise política, da crise da narrativa, da crise estética que vivemos. não é exatamente tragédia, nem tampouco é uma comédia.

para ler francisco mallmann é preciso romper com essas chaves rasas. seus instrumentos de medição de nada servem. é preciso desconfiar.

até porque francisco mallman explora bem como o rompimento é uma oportunidade de mudança de pensamento. a própria voz aqui nesse livro só surge por causa desse momento de fúria. nesse contexto, as palavras se tornam outras palavras, mesmo que sejam as mesmas, porque será francisco a usá-las. tudo o que leva consigo um nome é sobre redescobrir a raiva como motor, mostrar que afetos considerados negativos também são forças – para mudar pessoas, para criar arte, para abrir caminhos. para trocar paredes por janelas também na vida de quem lê. daqui mal posso esperar.