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TRABALHO

‎sete poemas de gabriela perigo

já fiz de tudo um pouco
senhor
e eles dizem que isso não
deve constar numa
carta de apresentação
afinal
ninguém se interessaria
pelo jeito
como se deve carregar uma
bandeja
o que se espera
é apenas que a
bandeja chegue
sem uma gota sequer
de sangue
um cílio ou seu suor
isso basta

eu já
vendi cerveja no downtown
sorrindo para homens de terno
ficando bêbada com os restos de espuma
esquecendo se dei o troco certo
me mordendo por isso
eu já
comi sorvete fora da validade
enquanto trabalhava num cinema
e essa era nossa alegria maior
os dias das comidas em avaria
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎‎ ‎ ‎ ‎ ‎foi quando conheci essa palavra: avaria
eu já
ganhei cinquenta reais
para ir até um supermercado
no jardim botânico oferecer
copinhos pequenos de cerveja
artesanal para compradores que passeavam por ali
eu já
fingi que trabalhava num escritório de design
e foi a primeira e única vez
que me vesti para estar no que achava ser
um escritório sério
meu bico era fingir que trabalhava
sentada atrás de um computador
almocei com meus companheiros de um dia
no centro da cidade
fiquei nervosa escolhi usar um colar de pedras
pintadas

tem essa amiga minha
que coloca em tudo que faz
uma precisão e desejo
absurdos
ela trabalhava no cinema também
a diária era de setenta e cinco reais
eu estava sempre um pouco puta
ela me ensinava o vigor
com a vida
adorava subir na escada para
trocar o letreiro das
sessões
era sua parte favorita
tenho uma foto

VENHA AQUI, QUERIDA

tem sempre um avô
suburbano que acredita
com todos os seus dentes
que é o trabalho quem
dignifica o homem

o trabalho é essa
entidade
que o pobre veste
e que muito rápido
se torna uno com ele
isto é algo
que marx conta com palavras
muito precisas
eles tiraram tudo
e deixaram a gente só com isso
as mãos nascidas pro trabalho

isso foi
forjado a ferro e fogo
no corpo dos
fodidos
não foi fácil
a história é
os vagabundos marcados na testa

assim foi
que eles marcaram
nos músculos
que o trabalho é tudo
que se pode querer

minha avó veio de minas
tentar a vida no rio
benfica era um chão de terra batida
meu avô na fábrica de sapatos
ela com uma caixa de laranja pra vender
essa é a história do começo do mundo

quando eu nasci
havia sacas de arroz e milho
três andares de casa
venda fiado e um balcão
que eu gostava de me debruçar por cima

a venda ficava precisamente
entre a entrada do arará
e a faixa de gaza do rio de janeiro
os sons intercalados
entre o louvor os trens e
os tiros
uma vez eu vi
as bicicletas de belleville
e as casa balançavam com
os trens passando
justo como a da minha vó

QUARTA

sinto saudade de estar com minhas palavras
sinto saudade de não precisar vender minhas palavras
preciso encontrar o que fazer
um trabalho que pague minhas contas

ARY PODE ME SORRIR

era dois mil e vinte e três e eu estava às voltas com o fato de ser artista
essa é uma palavra que não coube na minha boca até que eu decidisse que daria um jeito de caber
então uma vez que se dobra ela como uma língua que eu possa comer que eu possa falar
é preciso aprender a caminhar de novo
a dizer outras coisas para si e para o mundo quem sabe soldar um novo espelho
estar sempre de frente e por trás das coisas é uma sina
de quem trabalha e gosta e olha só que ironia trabalhar e gostar
meu avô daria boas risadas se me ouvisse dizer
eu trabalho e gosto
acho que ficaria feliz sambaria sua dentadura velha
fez algo de certo na vida, enfim

gabriela,
29, nascida e criada no subúrbio do rio de janeiro. formada em geografia pela universidade federal fluminense, atua como produtora, artista e poeta. dá oficinas de escrita e de edição, faz bicos como pode, guarda a palavra entre os dentes, trabalha. publicou 'es t ou vi va' (7Letras, 2020) e 'A Saga' (Garupa, 2022). os poemas aqui presentes compõe a série Trabalho, a ser publicada em breve.

tayná gonçalves
é jornalista multimídia e ilustrou estes poemas