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a
ㅤㅤ resistência,
ainda

“a ocupação”, de julián fuks, explora a ideia de resistência por meio da luta por moradia, de um relacionamento amoroso e de uma doença terminal

a ocupação
julián fuks

companhia das letras
142 páginas

1.

Um relacionamento é feito de palavras em comum. Aos poucos, todos os amantes vão criando seu vocabulário próprio, de palavras inventadas, apelidos, piadas internas. A rotina vai se enchendo de hábitos e vontades feitas de surpresa. Uma casa preenchida de gestos que não significam nada para quem está do lado de fora, contudo, demonstram a cumplicidade entre quem ali mora.

De certa forma, todo relacionamento infeliz é feito de palavras desconhecidas por um e por outro. O que deveria ser compreendido facilmente se torna um problema, desentendimento, palavras vãs, discussões intermináveis. Porque os significados sumiram. Porque o tom do dizer mudou.

2.

Meu bisavô demorou dias numa cama no hospital até morrer. O corpo idoso e debilitado sofria pra respirar até que não conseguiu mais.

Uma bisavó, sua esposa, teve uma perna comida, devorada por dentro, por uma bactéria que se aproveitou do seu descrédito com a família – sua demência fez com que ninguém acreditasse em seu sofrimento e ignoramos seus gritos agudos por meses até a cirurgia de amputação.

Um avô meu teve os rins comprometidos, se afogou no próprio pulmão enquanto era impedido de matar a sede. A família acredita que seu corpo foi ocupado por um erro médico.

Outro avô era negligente com a própria saúde e o próprio corpo. De certa forma, sua masculinidade não o deixava se consultar com frequência nem reclamar do que sentia ao urinar. Aguentou calado muitas internações e cirurgias, todas pelo mesmo motivo – até não aguentar mais.

Uma tia, por fim, quarenta e poucos anos, foi quem assustou a todos com sua perda de peso, crises de pânico, algumas células se multiplicando onde não deveriam. Rapidamente, aqueles dias no hospital acabaram e a conduziram para uma outra horizontal.

Enquanto leio A ocupação penso em todas as histórias de pessoas ocupadas por uma doença com quem tive contato. As visitas que não fiz me vêm à cabeça, assim como todos os velórios que eu não presenciei. Todas as vezes em que pensei nos lugares onde essas pessoas viviam e senti medo de enxergá-los vazios.

Eu precisava viver, precisava lembrar de viver, não correr o risco de esquecer de viver, cumprir a obrigação de viver, atender ao desejo de viver. Inspirar o máximo de vida e, só mais tarde, quando chegasse o tempo, expirar a vida de uma vez.

E foi isso o que me trouxe até aqui, querer ver vocês, querer ver o mundo apesar de tudo, querer ver tudo o que existe e tudo o que ainda há de existir.

3.

Assembleias, reuniões, manifestações viram pauta, mas também o passado das pessoas – homens e mulheres cujas vidas anteriores costumam interessar muito pouco.

Esquecer a ideia de um prédio estigmatizado.
Substituí-lo pelas histórias individuais das pessoas-ruínas que lutam por moradia numa cidade estratificada e desigual.
Incorporar a política numa prática cotidiana.
Partir de uma ocupação no centro de São Paulo para falar tanto de um cenário político amplo quanto de uma micropolítica.

Não há o sangue dos outros.
Todos nós esvaímos em cada um que sangra.

4.

Um hospital me lembra o tipo de abraço que eu não sei dar, as situações nas quais não sei conversar. Minhas frases não atravessam nada.

Fugi dos meus familiares porque não soube como fazer nenhuma dessas pessoas esquecerem todos os sonhos de eternidade e todas as ambições que jamais realizaram. Essa experiência é coletiva, mas o sentimento acaba sendo sempre de solidão.

Porque eu vejo: olhar alguém ocupado por uma doença é lembrar que estamos todos a caminho da morte, constatar que não vamos nos conhecer de verdade a tempo, perceber que meus objetivos também não vão se concretizar.

5.

Quando foi que nós, enquanto moradores de uma ocupação comum, deixamos de nos entender? De onde veio essa vontade de estrangeirismos para explicar o machismo estrutural ou a falta de vontade em explicar o que são palavras ainda enigmáticas para alguns, como sororidade?

Talvez a cordialidade seja um grande mito nesse país colonizado violentamente.
Ou talvez perdemos a vontade de contar qualquer história que possa convencer o outro.

Como podemos criar novamente um dicionário coletivo?

A conjuntura é de retrocesso, de repressão, de perda de direitos. Não dá para se fechar aqui dentro e ficar debatendo, só na delicadeza, esses detalhes de estética.

Nem perca seu tempo, a literatura não me interessa em nada. Só o que me interessa é a abertura para o diálogo.

6.

Pensar sobre lugar de fala, lugar de escuta, autocrítica.
Um livro feito a partir de processos compartilhados.

Literatura que mostra que política é relação.
Que afunda o dedo nas incoerências do mundo, mas que também assume as próprias contradições.
Que afirma sua própria soberania e expande nossa ideia de mundo.

7.

Ouvir é tão importante quanto compartilhar.

8.

O único início de uma revolução é o verbo.
Mesmo na descrença, precisamos conversar para seguir em frente.

O sorriso ainda é a única língua que todos entendem. E é por meio dela que algo novo e bonito será gestado.

andre aguiar
é jornalista e pesquisador.