Mulheres são vítimas das violências mais brutais. Leio no jornal que, no ano passado, o Brasil teve um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas. Esses números espantosos também são ardilosos. De fato há a denúncia, mas por trás dessa tampa o que se revela é um poço, o esquecimento por trás dos dados oficiais.
[-]
Na notícia, não há sequer uma palavra, um nome próprio que seja, sobre uma mulher em específico. Mulheres são apenas nada nadinha nadine mais que vítimas. Sem dúvidas, se eu fizesse uma pesquisa mais aprofundada, selecionando palavras-chave, encontraria matérias em que o nome da vítima é citado, mas isso não basta. Gostaria de saber se Elisa era uma cat person, se deixava o esmalte descascar, se quinta era seu dia de beber e fumar. Gostaria de saber se Eloá tirava um cochilo depois do almoço, se andava de pés descalços. Gostaria que Marta, a vizinha dos meus avós, fosse honrada pelas suas estratégias no buraco e, também, por conseguir colocar um sorriso no rosto de qualquer pessoa.
[-]
Em “nadine”, Luiza Romão faz o que nenhuma linguagem instrumental, como a do jornal, consegue fazer: usa a poesia para reconstruir a vida em torno de Nadine, tanto após seu assassinato, como antes dela virar apenas um número. A cada página conhecemos mais sobre a mulher assassinada: seus relacionamentos, sua gata kiddo, seus hábitos noturnos, seu gosto por tequila, os beatles.
[-]
O livro é uma história policial: começa com o crime, passa para os flashbacks, depois é iniciada a investigação e, no final, há uma reviravolta. Nadine é como um fantasma observando cada etapa, às vezes fala por si mesma, às vezes fica quieta e ouve a narração ou outras personagens.
[-]
Nadine foi uma vítima, mas antes e depois desse acontecimento, foi e será alguém. É isso que Luiza Romão faz tão bem, não deixa que uma vítima fatal morra, não deixa que o trauma seja o fim. Ao invés disso, mostra a potência de uma mulher, de muitas mulheres que continuam a existir mesmo após uma violência brutal.
[-]
As notícias não acolhem corpos como os nossos, corpos que desaparecem sem deixar rastros, mesmo após muito sangue derramado. Veja, a lambança é grande, mas o apagamento é maior. A reviravolta dessa história policial é a existência dessa poesia, que vívida reconstrói o que foi anulado. Nossos corpos ocupam as faixas das ruas, agora eles não conseguem nos ignorar. É preciso estar viva para fazê-los lembrar.