veja como
nos ㅤㅤ abraçamos
ㅤno brooklyn
Romance de Jacqueline Woodson promove a importância de criar afetos para enfrentar as lutas em comum
Augusta e seu irmão cresceram sem a mãe. Para ele, houve a religião, conquistado pelo pai e abraçado pelas crenças muçulmanas. Para ela, a amizade: Gigi, Angela e Sylvia compartilhando o peso de crescer menina no Brooklyn, como se fosse um fardo que passavam de mão em mão, dizendo: Ei, me ajuda aqui a carregar.
Agora, eles também perderem o pai e Augusta precisa retornar ao bairro onde cresceu para cuidar daquilo que o pai deixou. Ela tenta não pensar na sua imagem sozinha no apartamento do pai, no alívio profundo, no medo advindo da morte. Tenta não pensar nas roupas a serem doadas, na comida velha para jogar fora, nos quadros para empacotar. Tenta não pensar no tempo em que não conhecia a palavra antropologia, nem sabia direito onde ficava sua universidade, nem jamais havia andado de avião por todo o mundo. Tenta não pensar no monte de terra cobrindo o pai e se concentra nos rituais que conhece, no povo hindu cremando seus mortos, nos caviteños enterrando os mortos em troncos de árvore, nas pessoas de Madagascar perfumando os mortos.
A morte não a assustava. Agora não, não mais. Mas o Brooklyn parecia um nó em sua garganta. É pisar novamente ali e sua mente a trai, é ver de longe uma das três amigas que teve e sua memória a coloca novamente na sua adolescência. E, então, é impossível sair novamente daquele tempo e daquele lugar onde os laços de afeto representavam tudo para ela.
Trágico não é o momento.
É a memória.
um outro brooklyn
jacqueline woodson
tradução de stephanie borges
todavia
120 páginas
O ano em que a mãe de Augusta começou a ouvir as vozes do irmão falecido na guerra foi o ano em que a família se separou. Um Outro Brooklyn começa quando pai e filhos saíram do Tennessee e seguiram para o Brooklyn no verão, mas as brincadeiras do lado de fora da casa estavam proibidas. O verde do campo se dissipou no calor exalado do concreto. As duas crianças passam os dias olhando o que fazem as outras pessoas pela janela, o rosto apoiado sobre o vidro, as mãos espalmadas na superfície, invejando a liberdade que o pai não permitia naquele novo bairro. O mundo não é tão seguro como vocês gostam de acreditar que é, vejam Biafra, vejam o Vietnã.
O primeiro romance de Jacqueline Woodson que chega ao Brasil se passa nos anos 1970, quando o aluguel no Brooklyn era tão barato que as pessoas podiam trabalhar e ter uma vida decente sem precisar de um diploma universitário. Quando boa parte dos homens do bairro não chegava a terminar o colegial, mas conseguia viver bem e sustentar uma família.
Muito disso não acontece mais. Os moradores do bairro passaram a ser expulsos, uma questão real de gentrificação. Com a fama do bairro, ligada principalmente à diversidade cultural e artística que aparece nos cinemas e na televisão, o preço dos aluguéis subiu na região — o que gera uma controvérsia, já que os estúdios e moradias de preço mais baixo permitiam à população negra, latina, imigrante fazer arte, fazer seu trabalho.
O Brooklyn, hoje descaracterizado pelos grandes investimentos imobiliários que levaram ao embranquecimento da região, funciona como um espelho da narradora do romance. Num primeiro momento, quando o som arrebenta a moldura e a janela se estilhaça, o Brooklyn abraça tudo que ela sempre desejou, a acolhe na forma de uma amizade grandiosa. Depois, suga Augusta e as outras jovens para um presente desolador. É quando a garota amadurece, a narrativa se desenvolve e os problemas começam.
Eu estava começando a odiá-las.
Eu estava começando a amá-las.
Quando davam o braço umas para as outras e andavam pelas ruas, Angela, Gigi, Sylvia e Augusta tinham certeza de que não havia ausência alguma no passado. Eram fortes e seguras, inatingíveis, estáveis. Enfrentavam suas realidades duras, os atos de assédio dos garotos mais velhos, os conflitos econômicos dos pais. Elas desejavam ter exatamente o que tinham — oito pés firmes.
Jacqueline Woodson cria com primor personagens que, diante das outras, enxergam as próprias perdas, virtudes e desejos. Apesar de não conhecermos suas vozes, temos acesso ao que Augusta conhece das suas biografias. Sylvia, assim como Augusta, não nasceu no Brooklyn. Veio da pequena ilha da Martinica, desaprendeu rápido o francês, sente dificuldade de se comunicar com o pai que lê Hegel e cita muitos trechos em voz alta. Gigi sempre era perguntada se sua mãe era sua irmã, sempre detestava essa confusão que levava a uma história de gravidez na adolescência. Já Angela vem de uma família estruturada, mesmo que silenciosa, mora numa casa com cortinas bonitas e sente que a única história que tem para contar é aquela: a história que vivem juntas, a história sobre enxergar finalmente um lar.
Um Outro Brooklyn fala sobre a importância de criar afetos que reconheçam as lutas em comum e enfrentem as realidades juntos. Augusta rebate com sua vivência as falas da mãe que ecoam ideias de rivalidade feminina — Não confie nas mulheres. Elas vão pegar o que você pensou que era seu —, sonhando com o dia em que a mãe voltará e poderá enxergar a beleza de ter amigas verdadeiras — Você estava errada, mamãe. Veja como nos abraçamos, rimos, começamos e terminamos uma na outra.
Sempre juntas, elas passam a entestar casos de abuso, o bairro violento e a dinâmica com gangues, as mudanças ocorrendo em seus corpos. Criam contextos seguros para experimentar drogas ilícitas, experimentar os toques de outra pessoa, ter os primeiros namoros. Debatem as relações tumultuadas com os pais, tentam entender a pobreza em que se localizam e sonham com outras expectativas impostas sobre suas carreiras. Pelos temas relacionáveis com adolescentes e pela linguagem que é lírica mas não hermética, o livro pode servir para o público juvenil e lido como um romance de formação, apesar de estar no espectro da “ficção adulta”.
A relação de amizade entre Augusta, Sylvia, Angela e Gigi garante confiança o suficiente para permitir que o mundo ao redor receba suas palavras e segredos. É este movimento que o leitor sente a cada sentença disposta por Woodson na obra: histórias que queimam entranhas, quase até as cinzas.
Em algum ponto, todas as coisas, tudo e todos, se transformam em memória.
Augusta e seu irmão cresceram sem a mãe. Para ele, houve a religião, conquistado pelo pai e abraçado pelas crenças muçulmanas. Para ela, a amizade: Gigi, Angela e Sylvia compartilhando o peso de crescer menina no Brooklyn, como se fosse um fardo que passavam de mão em mão, dizendo: Ei, me ajuda aqui a carregar.
Agora, eles também perderem o pai e Augusta precisa retornar ao bairro onde cresceu para cuidar daquilo que o pai deixou. Ela tenta não pensar na sua imagem sozinha no apartamento do pai, no alívio profundo, no medo advindo da morte. Tenta não pensar nas roupas a serem doadas, na comida velha para jogar fora, nos quadros para empacotar. Tenta não pensar no tempo em que não conhecia a palavra antropologia, nem sabia direito onde ficava sua universidade, nem jamais havia andado de avião por todo o mundo. Tenta não pensar no monte de terra cobrindo o pai e se concentra nos rituais que conhece, no povo hindu cremando seus mortos, nos caviteños enterrando os mortos em troncos de árvore, nas pessoas de Madagascar perfumando os mortos.
A morte não a assustava. Agora não, não mais. Mas o Brooklyn parecia um nó em sua garganta. É pisar novamente ali e sua mente a trai, é ver de longe uma das três amigas que teve e sua memória a coloca novamente na sua adolescência. E, então, é impossível sair novamente daquele tempo e daquele lugar onde os laços de afeto representavam tudo para ela.
Olhando da vida adulta, o passado de Augusta se mete em cenários nebulosos, tornando turvas algumas passagens e acontecimentos. É próprio do relembrar criar hipóteses, favorecer pontos de vista em detrimento de outros, misturar acontecimentos num fluxo livre e quase desordenado. A narração de Woodson convida o leitor a duvidar, refletir e, principalmente, guardar informações que, apenas páginas depois, serão compreendidos. Alguns símbolos e elementos que a autora dispõe, como os caminhões de mudança na entrada do prédio onde Augusta e sua família moram, as curiosidades sobre a morte em diversas culturas que ela enumera, as frases das músicas que faziam sucesso nos anos 1970 e as falas dos adultos em torno das mesas de jantar, podem parecer desconexos ou pretenciosos à primeira vista. Aos poucos, ganham sentido. Pequenos fragmentos do Brooklyn desabam a cada página, revelando Augusta.
Um Outro Brooklyn é um romance sobre olhar para trás e entender que contextos, de certa forma, determinam possibilidades de fugas. As quatro garotas, juntas, gritando de volta, rindo alto, cantando pelo caminho, era algo que ninguém ali conseguia entender. Aquele bairro só entendia meninas solitárias, com os braços cruzados sobre o peito, suplicando pela invisibilidade. Aos poucos, o que era união vai se interrompendo. O mundo do lado de fora não permitindo a mesma liberdade, as mentes cedendo para aos fantasmas, os corpos tropeçando nos cacos. Os fracassos que os adultos sempre as ofereceram vão se desenhando aos poucos, entre um apagão na cidade, relacionamentos interrompidos, desaparecimentos abruptos e o desejo impossível de estar na pele da outra. Não bastava sonhar com outro caminho, com outro lugar além desse, como se houvesse um outro Brooklyn.
Antes de começar a narrar, Augusta já sabe o fim da história. Seu pai está morto, sua realidade já se transformou, a amizade não sobreviveu. Perceber esse fato é importante para notar que o tom que Woodson cria é de distanciamento em relação a tudo. Algumas cenas até podem estar pintadas com cores mais saturadas que a realidade, mas a protagonista não julga a si mesma do mesmo modo que não sente pena da sua versão de 8 anos ou 15 anos ou 11 anos. Eram adolescentes. O que sabiam? Quase nada.
Décadas depois dos primeiros acontecimentos, o que restou foi apenas ela, profundamente embrenhada no mundo que um dia desejou desesperadamente pela janela. Enquanto vaga nos próprios pensamentos, seu corpo conta histórias. O romance de Jacqueline Woodson fala sobre todos que, como Augusta, agora trabalham duro para encontrar uma saída, combater o luto, escapar do que ambicionou.