FELIZ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ idade
em “a máquina de fazer espanhóis”, valter hugo mãe fala sobre felicidade e vida plena contando histórias de idosos em uma casa de repouso
silva acaba de perder a esposa e foi enviado pela filha para um asilo, para ser cuidado por enfermeiros e conviver com outras pessoas da sua idade. o velho, porém, se mantém insatisfeito com essa situação. não é possível haver felicidade no abandono e na viuvez. quando você já viu tudo da vida e nada mais te impressiona, o que resta? viver na amargura da rememoração já que sua coluna sente cada segundo que ele passou na terra? por que motivo precisaria estar vivo se prefere não estar? se irrita com sua posição, a de uma pessoa necessitada de cuidados, acha injusto. a morte de sua esposa lhe indigna, pois não sabe existir sem ela depois de 48 anos juntos. se acha a pessoa mais solitária do mundo agora que o amor da sua vida morreu, mas acredita que se unir aos outros idosos é aceitar uma derrota, uma carta de demissão da vida. só ter amigos velhos seria um estágio final para se desintegrar. prefere se manter sozinho e desconfiado no lar feliz idade.
é de longe que silva observa as dinâmicas do asilo. de um lado, as janelas dos quartos exibem um campo florido, onde brincam crianças durante o dia. há sol, é possível ver a esperança. a esperança de estar perto da porta de entrada. é possível que ninguém ali ainda tenha perdido a fé, já que vivem nestes quartos os moradores recém-chegados ao lar. do outro lado, contudo, quem deseja espreitar o mundo pelas grades enxerga um cemitério. uma localização útil, dizem. os quartos mais decrépitos, para os moradores mais antigos ou mais doentes. como um prenúncio do que está prestes a acontecer – ou para facilitar a remoção dos corpos brancos, pensa silva.
um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda vamos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento.
a máquina de fazer espanhóis
valter hugo mãe
biblioteca azul
264 páginas
enquanto isso, o leitor participa de perto. muito de perto.
sem utilizar nenhum sinal gráfico além da vírgula e do ponto final durante boa parte do livro, valter hugo mãe dispõe o texto de a máquina de fazer espanhóis de uma maneira visualmente desorganizada. é o leitor quem precisa identificar e julgar o que são marcas de oralidade e ler o texto conforme seu pensamento, participando diretamente da narração. escolhendo o que é diálogo e o que é pensamento no meio de diversas palavras sem aspas e sem travessões.
há uma exceção, contudo. um capítulo em que o lar se torna cenário para policiais: neles, a polícia representa a ordem, a regra, e precisa de letras minúsculas e maiúsculas sendo dispostas corretamente, não ouse sair da linha.
entender essa dinâmica do texto é, de certa forma, acompanhar a nova rotina do protagonista. os horários regrados, os rituais diários, os comprimidos distribuídos, as dietas sendo seguidas à risca. tudo é lento como uma senhora de andador. isso incomoda silva: primeiro, porque ele está ali; depois, porque ele se torna parte disso.
a partir do momento em que silva passa a conhecer as dinâmicas do asilo, notamos valter hugo mãe como um excelente criador de tipos. a gente acredita em cada personagem que ele insere no lar feliz idade, todos com suas peculiaridades. a mulher idosa que foi abandonada pelo namorado jovem e interesseiro. o esteves que foi inspiração para fernando pessoa. os idosos que conspiram que alguns cuidadores aceleram “o objetivo da vida”. o velho mais teimoso e rabugento do grupo. o idoso de esquerda. os namoradores. o senhor de oitenta e tantos anos que conserva a vitalidade mesmo depois de um ataque do coração. aquele outro que não dispõe mais nem da força física necessária para fazer suas necessidades mais íntimas.
todas as figuras do lar conseguem fazer a mente de silva viajar para outros lados e mostrar ao leitor o seu passado, mas é com estas também que a máquina de fazer espanhóis passa ser um livro sobre relações humanas e criação de laços. silva começa a enxergar a beleza das diferenças e construir amizades que ele não poderia se estivesse dentro do círculo fechado de sua família.
todos os idosos ali criam juntos um senso de união e coletividade admirável, sendo sempre um alento ao outro numa fase que costuma ser de desamparo e incompreensão. junto de todos, num espaço diferenciado e muito mais justo com o que ele precisa nesta fase da vida, silva experimenta o mundo de uma outra forma e passa a narrar sua história de uma forma mais sensível e leve consigo mesmo, rindo dos novos colegas e ironizando as situações que ocorrem. é como se a consciência da morte – ela por ela mesma, sem necessitar de artifícios religiosos, políticos ou espirituais e inclusive farpeando quem os utiliza – fizesse as personagens estarem mais cheias de consciência do que é a vida.
nunca tinha percebido como um estranho pode nos pertencer, fazendo-nos falta. não era nada esperada aquela constatação de que a família também vinha de fora do sangue, de fora do amor ou que o amor podia ser outra coisa, como uma energia entre pessoas, indistintamente, um respeito e um cuidado pelas pessoas todas.
quando silva se abre, quando ele percebe que seu tempo não acabou, tudo se torna um lar de fato.
porque a vida nunca está pronta. ela está sendo construída o tempo inteiro, em cada decisão que a gente toma, em cada pessoa que a gente cruza. somos essas almas inacabadas, ainda sendo erguidas.
uma conversa corriqueira ainda vai te transformar.
uma música nova ainda vai tocar e te causar arrepios.
uma pessoa bonita ainda vai entrar na sua vida.
um livro incrível ainda vai aparecer na sua caixa de correios
e mexer com você inteiro por dentro.