leio joão gabriel madeira pontes como leio um manual de salvamentos. 1) substituir um pássaro na revoada. 2) cantar mesmo que se entre no ônibus errado, mesmo que se perca o horário de todos os compromissos. 3) sempre desconhecer o respiro depois de um beijo.
a cada poema, avançamos mais nessa abordagem bem-humorada e certeira sobre como funciona o mundo através das chaves, dentro dos jardins. um manual para se livrar dos monstros – a ausência de cigarro que provoca incêndios, as touradas dos piores inimigos, o dinheiro apostado inteiro em bilhete sem prêmios. porém 4) alegrar-se ainda assim com pão, cerveja e uma cidade dada de presente a você. e 5) registrar as distrações com uma câmera. e 6) não interrompa os piqueniques mesmo que lagartas rastejem sobre suas unhas.
apesar da epígrafe, há aqui sim invenções habilidosas, maravilhosas para o propósito do salvamento. para esses dias cinzentos, essas manhãs com cheiro de borracha, longas de esquecimento. em caso de estranhas se afogando na faixa de areia, 7) agarre-se a sua mãe. 8) testemunhe a virada do milênio com fé. 9) tape seus ouvidos, se for preciso.
mesmo embora nenhum poema seja uma resposta, uma dica, uma instrução, persiste em quem lê a vontade de escapar, como um maratonista em chamas dentro de uma casa sem saída. 10) dançar sozinho de saltos emprestados. 11) erguer monumentos ao fim da guerra. 12) mergulhar nos cemitérios marinhos de outra pessoa.
manobra de heimlich é sobre acreditar no futuro, mesmo que seja por uma esperança melancólica. 13) construir afetos para os tempos difíceis e 14) evocar o nome deles ao menor sinal de engasgamento.
olhando de longe, a terra é só uma figura bidimensional, estático e incompleto. de perto é que se percebe o movimento, os rinocerontes, os amigos, os pinheiros que crescem. de perto é que o poeta estranha essa fresta por onde se escorre o sangue, esse rasgo por onde entra a chave, esse risco que atravessa uma capa de papel.
e, então, 15) sacrifica mais uma página em branco. e mais uma. e outra. e outra. e se ainda escrevêssemos em peles de bezerros, é certo, o poeta se atreveria a sacrificar bezerros também. pelo salvamento.