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o ㅤㅤ nome
disso ㅤㅤ tudo
é ㅤㅤ casa

marana borges mistura prosa e poesia em “mobiliário para uma fuga em março”, a construção de um inventário após a morte de uma família

mobiliário para uma fuga em março
marana borges

dublinense
400 páginas

é possível saber o exato momento em que algo começa? uma mulher abre a história olhando ao redor, verificando como o tempo corroeu a casa onde viveu: a cerca caída, o portão pendendo para o lado, a lareira finalmente suja. abrindo as caixas seu passado vai saltando. ali está todo o espólio de sua mãe, uma hipoteca em caixas de sapatos. são pires, xícaras, cerâmicas, recibos, vidros de acetona, carretéis, vestidos, peles, teclado, luvas de boxe, cubo mágico, revistas de arquitetura, bebedouros de água com açúcar, a viagem que nunca aconteceu, o cachorro que morreu antes do tempo, livros riscados nas margens, aquele momento preciso que divide o tempo em antes e depois.

mobiliário para uma fuga em março é a construção de um inventário após a morte de uma família: a filha que ficou confronta seu passado ao averiguar cada objeto que encontra nessa casa que (como devo chamar a casa?). as marcas estão nos tacos, nos rodapés, todas as partes. marana borges mistura prosa e poesia relatando uma infância de abusos e privações causados por uma mãe com tendência à megalomania e um irmão cujo afeto é sombrio. vende-se com tudo dentro.

Subida de paralelepípedos e sem saída: não dá em lugar algum, não é caminho para nada. Viemos viver em um fim de mundo.

um livro de coisas barulhentas:
rangidos
zumbidos
estalos
acalantos
sussurros
gritos
castigos
olhares
silêncios

*

ela tenta entender o que é real e o que não é e eu imagino um jogo: a casa de praia é real, os sacos de areia são reais, o cheiro de mofo é real, o sumiço é real, o desmonoramento é real, a casa é real, a mãe é real, o irmão é real, logo, tudo que ela acha que os une é real, assim como tudo que os destrói. ela se acha perigosa, ela se acha lasciva, ela tem medo de os arrastar para o ponto exato no tempo em que ela estraga tudo – e por isso precisa fugir.

*

da mãe vinha os conselhos – vai, filha, é correndo que se consegue viver – mas também filha e mãe vivem uma tensão que é marcada por uma diferença patente, o cabelo crespo da filha que não corresponde ao cabelo liso da mãe. é preciso cortar o cabelo da menina, deixá-lo sempre curto, assentado, apresentável. com o filho, é diferente. o cabelo dele é liso. o cabelo perfeito para uma mãe que desejava filhos que fruíam música clássica e admirava as origens francesas. é ele o filho preferido, prodígio, o dono da cena.

a qual mãe ela poderá pedir socorro senão a esta? quais crianças a ensinarão a ser mais paciente se não estas? é uma mãe que ama ou uma mãe que odeia? por que as duas mães são tão parecidas? como saber a diferença?

como não confundir
os atos cometidos por carinho
com os atos cometidos pela raiva?

parece haver na imagem da menina a lembrança de outra fuga, do marido que não se apresenta, do pai que não está presente. é assim que ela se forma: a menina é feita de lacunas, é composta por espaços vazios – nessa leitura, o texto que é visualmente cheio de espaços em branco, linhas quebradas, pedaços isolados também compõe sentido. (abra-o: um livro em camadas.) lhe falta o reconhecimento do outro, aquilo que a habilitaria para uma vida livre. então, é preciso fugir.

Seus olhos me roubaram tudo: a fala, os quartos, as peles.

ao entrar no dormitório, menina bate a porta com força. TOME CUIDADO, a mãe grita, as dobradiças são velhas e podem soltar se você continuar assim, do mesmo jeito que o reboco está soltando, como as tábuas do assoalho que começam a se soltar, como as telhas que se soltam, da grama solta pelos ratos enormes.
minutos depois, menino bate a porta e a mãe sorri e dá uma risada.

é ele o filho preferido, prodígio, o dono da cena. que entra no quarto da menina à noite, que acompanha o movimento da menina com os olhos, que se desfaz das roupas, que vai virando bicho. é por ele que a menina precisará correr quando a mãe deixar de fazer isso. isso não é uma casa. isso são mãos que aprenderam os piores crimes.

com essa relação, marana borges toca em temas sensíveis, com uma linguagem que não faz o assunto se tornar polêmico. os vestígios aparecem e quem lê deve se ocupar da busca. tudo acontece para além dos olhos fechados, enfrentar a dor junto à protagonista. quando falo que esse é um livro composto em camadas, não quero dizer que as entrelinhas dizem muito e alguns acontecimentos são metafóricos. quando falo que esse é um livro composto em camadas, digo que a cada capítulo vamos acumulando informações, versos, pistas que constroem juntas essa lembrança maior. é disso que se trata catalogar objetos.

*
se você fosse uma casa, como ela seria? quais as estampas nas cortinas? quais seriam as cores das paredes? qual o modelo do sofá? há uma escada? quantos dormitórios? qual a cor das louças do banheiro? esse chuveiro é um bom chuveiro? como é a cozinha, o corredor, o pórtico de entrada? há espaço para reuniões entre amigos ou você vai continuar jantando sozinho? o piso já estava arranhado assim quando você chegou? não seria melhor se você levantasse essa cadeira em vez de arrastá-la pelo chão? o que essa pia está te dizendo? o que poderia ser visto das janelas? a decoração é feita com quadros, papéis de paredes ou fotografias? quantas roupas estendidas cabem secando na área de serviço? quais flores você plantaria nesse jardim: tulipas, dálias, camélias? não há jardim? ok. é uma planta antiga ou algumas paredes já foram demolidas e reconstruídas em outra posição? é uma casa nova ou alguém já morreu neste porão? como essa casa se chamaria?

*

o que uma casa pode dizer sobre quem mora nela? ler marana borges é um convite para reparar no próprio mobiliário, nas casas onde se viveu. no primeiro apartamento onde morei sozinho não batia sol, mas havia liberdade. também morei numa casa dos sonhos, com alguém para quem eu podia olhar e que me olhava de volta. com amigos, vivi num lugar enorme, cinco quartos e azulejos antigos – pois famílias grandes se tornaram raridades e o mercado imobiliário sabe disso. já morei em apartamentos de favor, já morei com estrangeiros em um albergue. também ocupei um quarto avulso, nos fundos de um lugar que não me pertencia. e aqui, onde escrevo agora, é a casa onde nasci, construída diante de uma grande pedra de milhões de anos de idade, me lembrando que sou apenas um breve instante no mundo e que não faz sentido passar esse tempo tão amedrontado.

*

para isso, é preciso escapar do muro, fazer as malas com cuidado para não acabar carregando sem querer a obsessão da mãe com portas de vidro, as expectativas criadas em cima daqueles que perdemos para sempre, a ansiedade que a fazia adiantar-se aos finais dos livros. para isso, antes mesmo dos pelos, antes mesmo dos seios, antes mesmo da idade, ela já planejava tudo.

então, é preciso fugir. ou parece que. certa vez eu li que a maternidade não é um caminho que se trilha, mas uma loucura que se herda. o passado nas caixas mostra também um futuro que não perdoa ninguém. a dúvida para quem lê é: quem conta uma história como essa seria capaz de não enlouquecer? quem vive uma história como essa seria capaz de não enlouquecer? escrever a vida, descer aos escombros.

*

fugir:
um ato cometido por carinho
ou um ato cometido por raiva?

Inventário é a atitude de quem volta. Uma coleção de objetos cujo único destino é terem sido legados a sobreviventes.

tudo se afirma no tom melancólico. é porque a companhia de certa esperança, a expectativa da menina com a fuga já é tirada do leitor logo no início do romance. longe de casa, deve ser tudo diferente. em lisboa, deve haver apartamentos, amantes, empregos, ar livre. veja como tudo é possibilidade, veja como tudo é aberto e sem muro. a fuga está dada no título, mas o início é o retorno. o modo como as linhas se desenrolam é que é a grande graça desgraça pedra ribanceira ruína desastre

se é preciso fugir, por que voltar? por que olhar tantas caixas e encontrar blusas de caxemira, duas luvas vermelhas e uma infância? por que encarar e não enterrar o passado? por que ir a lisboa se leva a chave de casa consigo? 

a mãe corre, a menina imita, os carretéis escapam. desaparecer é perto demais. depois da debandada, a forma é inteira pedaços. estou juntando os meus.

andre aguiar
é jornalista e pesquisador.