fio d’agua
daniel massa
7letras
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naquele tempo, construíam-se cidades em torno do rio. e feiras e vendas em torno do bodozal. os homens maltratados e as mulheres espoliadas atravessando as paisagens de barco e bote. mais e mais gente se tornando escrava e mais e mais peixe se tornando comida farta e mais e mais peixe se tornando comida cara. nas águas, a convivência dos peixes, das lendas e dos bebês, avançando devagar, levado pela correnteza, por entre os caniços até as mãos de orsina, a mulher que o retiraria das águas, daria-lhe o nome de moisés e obrigaria sua vida a ser vivida paralela às águas, curvada a elas.
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há algum tempo chove. essa primeira cena é o mito que estabelece a origem das relações em fio d´água, de daniel massa. é a história de uma avó protegendo um neto do afogamento, de uma mãe chamando o filho pros seus braços, de um homem descobrindo a cidade dentro, da água retornando para buscar o que a ela pertence. um livro de poesias, mas também uma narrativa em versos. em volta desta mesa velhos e moços, seres e devires, humanos e não humanos. as formas híbridas também sinalizam para referências diversas: narrativas cristãs, histórias indígenas, mitologias gregas, música brasileira – tudo é devorado pelo autor e flutua ao longo da páginas a sua maneira. o que não é fio d’água será.
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e um alçapão se abre no céu: é o dilúvio. daniel massa funda a paisagem para orsina, moisés e iara nadarem inundando cenários reais, como o teatro amazonas, as feiras de peixes, o instituto artífices em educandos, as palafitas e outra rua qualquer em manaus. toda a construção é sólida, mesmo que feita sobre varetas. é assim que submergem conflitos históricos e questões atuais, como a luta pelo estabelecimento da terra, os programas sociais e a ocupação urbana. todos correndo e andando e não se cansando e não se fatigando. a mesma água que nega a terra cede à sua calma.
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é com metade molhada do corpo no rio e metade molhada do corpo no ar que se descobre que a esperança tem um nome. se na história bíblica, moisés enxerga deus no fogo, em fio d’água tudo acontece sob as circunstancias extraordinárias da água: é a água que brilha e arde, que mingua mas não se destrói, que ilumina a vida mas não a leva embora. são grandes volumes de água que conduzem a narrativa: a chuva arrasta os personagens para o rio, o igarapé leva todos eles pro fundo. o suor, o vapor, a umidade noturna. toda cena parece um batismo, pois o inteiro corpo está correntemente imerso. e se é nesse ritual que entendemos que somos filhos de algo maior, é também no afundamento que reconhecemos toda a nossa fragilidade.
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naquele tempo, construíam-se cidades em torno do rio. e o bodozal e feiras e vendas e festas flutuantes. os homens maltratados e as mulheres espoliadas atravessando as paisagens de barco e bote. e um fio que é uma cobra que também é uma canoa extensa da qual todos fomos passageiros embora alguns tiveram a chance de descer no ponto final. aqui está o ponto em que retornamos: o fio que une o velho desana em uapés e daniel massa sitiado na rua bambina e eu aqui agora em são paulo é um só. é uma história.