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o livro do figo

lilian sais

edições macondo

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ah, o desejo. antes de dormir, passar cotonete nas sobrancelhas, sentir prazer com isso até lembrar que deus está vendo tudo. mas que vergonha, então foi isso que Adão sentiu quando usou folhas de figo para esconder as partes. Esconder sim, mas não muito, porque o desejo é resistente, do desejo não se foge, ainda que entendê-lo seja como segurar os ramos de uma figueira por segundos, antes deles se quebrarem.

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“então disseram as árvores à figueira: vem tu, e reina sobre nós”. esta é uma frase bíblica que está na epígrafe do livro. logo abaixo vemos a radiografia de uma arcada dentária, onde falta um dente. na Grécia antiga, havia o deus Eros, responsável pelo desejo e pelo amor sexual. suas flechas são doces, mas também perfuram suas vítimas. o desejo parece ser também uma experiência de buraco, de falta, de dor. se as figueiras reinam, se o desejo reina sobre nós, há sempre algo faltando.

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em “O livro do figo”, parece haver dois movimentos nos poemas, o primeiro é de fundir o cotidiano ao elevado, o outro é de fornecer significados ambíguos a uma mesma palavra. margem pode estar relacionado a algo muito cotidiano, como a margem de lucro de Fernando com suas coxinhas, também pode se referir ao que separa o cotidiano do elevado ou pode ter um outro sentido que ainda escapa. assim, também acontece com outras palavras, como a própria palavra “figo”: ao mesmo tempo que figo é um fruto, figo é desejo, figo é um jogador de futebol.  

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esse acúmulo de significados para uma mesma palavra causa também um efeito confusão, é como se nesses poemas, lilian sais estivesse sempre embaralhando as cartas na nossa frente ou construindo com elas castelos que duram sete majestosos segundos. participando deste jogo bastante perigoso, quem está lendo pode a qualquer momento se sentir flutuando e de repente ver a água sumir, sentir toda a força da gravidade voltar, levando o corpo para o rés do chão. 

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a principal característica dos jogos é talvez a ideia de teia de acontecimentos que se interligam numa relação de causa e efeito. o amor é um jogo, a poesia é um jogo, a vida é um jogo, sentir dor faz parte do jogo. chegar ao fim dessa leitura, é ficar sem cartas na manga e, flutuando, perceber a beleza dos acontecimentos, ainda que haja dor, ainda que haja morte, há acima de tudo essa capacidade de experienciar, a qual chamamos de vida.