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PARA
ACABARㅤㅤ COM
ÉDOUARDㅤLOUIS

EM DOIS ROMANCES AUTO-BIOGRÁFICOS, ÉDOUARD LOUIS EXPÕE QUESTÕES SOBRE MASCULINIDADE, POBREZA E VIOLÊNCIA NUM VILAREJO DO INTERIOR DA FRANÇA.

1.

Tanto faz se meus primos estão visitando minha casa, ou se estou eu na casa deles. Isso não importa. Independente do lugar, o que não muda sou eu tentando brincar com os brinquedos deles, imitando seus gestos, suas gírias, seus tons de voz. O que não muda sou eu sendo criticado pelo meu tio, que disfarça uma risada, mas eu ouço, que disfarça uma cara de escárnio, mas eu vejo. O que não muda é meu pai claramente desconfortável, se sentindo falho ou falido, por ter criado um filho defeituoso, inadequado.

Se ele pudesse, ele me trocaria por qualquer um deles.

Parece que eu nasci assim, ninguém jamais entendeu a origem, a gênese, de onde vinha essa força desconhecida que se apossou de mim desde o meu nascimento, fazendo-me prisioneiro de meu próprio corpo.

2.

Édouard Louis vem de um lugar onde homens brigam, homens falam palavrões na cara uns dos outros, homens socam barrigas, homem degolam porcos, homens extraem o sangue dos porcos para fazer chouriço, homens bebem o sangue do porco ainda quente, o sangue escorre pelos lábios dos homens, pelo queixo dos homens, pela camiseta dos homens, o hálito dos homens tem cheiro de laticínio e morte, homens matam gatinhos recém-nascidos, homens cospem no chão, homens cospem na cara uns dos outros, homens são dominados pelo álcool, homens são vítimas de suas bebedeiras, homens olham para mulheres de forma insistente, homens defendem suas mulheres comprometidas de olhadas insistentes, quem você pensa que é para olhar minha mulher desse jeito, seu filho da puta de merda?, homens chegam em casa com o rosto coberto de feridas, homens são companheiros entre si e entram em brigas que não são deles, mas de seus amigos, isso era ser um amigo de verdade e também isso era ser um homem de verdade.

Homens marcam com ferro em brasa ou com faca ou com verbo o corpo dos indivíduos desviantes, o corpo daqueles perigosos para a comunidade. Homens pronunciam a palavra veado aos outros e, quando isso acontece, nasce a impossibilidade de se desfazer dessa marca. Foi surpresa o que atravessou Édouard naquele dia, mesmo que aquela não fosse a primeira vez que lhe diziam algo semelhante. A gente nunca se acostuma às ofensas. Veio um sentimento de impotência, de perda de equilíbrio. Ele sorriu – mas a palavra veado ressoava, explodia na sua cabeça, palpitava dentro dele na frequência dos seus batimentos cardíacos.

3.

Se ele pudesse, ele me obrigaria a jogar futebol, praticar uma luta, ter modos mais brutos. Se ele pudesse, ele me adequaria a uma mesa de bar, onde eu pudesse beber com ele e falasse de uma namorada. Ele imagina isso na sua cabeça, uma cena da qual sente orgulho, e resolve simulá-la. Ele me chama, me coloca ao lado de uma tábua com churrasco sangrando e meia dúzia de garrafas de cerveja vazias, e tira uma fotografia. A gente se adapta rápido ao medo. A gente convive com ele com muito mais facilidade do que poderia imaginar. Ele se torna só uma companhia desagradável. Eu passei a dominar o medo melhor e melhor.

Eu espero pela foto sendo exibida como um troféu no grupo da família, contudo, ele nunca a posta.

De minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz. Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, durante aqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.

o fim de eddy
édouard louis
tradução de francesca angiolillo

tusquets / planeta
176 páginas

4.

Ele era magro, eles devem ter considerado que sua capacidade de defesa fosse parca, quase nula. De certa maneira, eles estavam certos. E Édouard ficou ali, pensando, olhando de fora, na humilhação, na incompreensão, no medo, porque, se ele pensasse na dor, seu corpo desabaria. Os insultos se alternavam com os golpes e Édouard em silêncio, sempre. Ninguém em volta dava importância, mas todo mundo ouvia. Acho que todo mundo ouvia, porque ele se lembra dos sorrisos de satisfação que apareciam no rosto dos outros no pátio ou no corredor do colégio, como se lhes desse prazer ouvir os agressores fazerem justiça, dizendo aquilo que todo mundo pensava no fundo.

Eu não estava lá, mas eu lembro dos sorrisos e das risadas também.

5.

Em O Fim de Eddy, Édouard Louis apresenta sua infância e adolescência como um corpo dissidente numa cidade do interior da França com seus papéis sociais muito bem estabelecidos. Homens são violentos, mas não classificam seus comportamentos como violentos. Naquele vilarejo, os homens nunca usavam essa palavra, ela não existia no seu vocabulário. Para um homem a violência era algo natural, evidente. Mulheres aparecem exatamente no lado oposto dessa relação, como um espelho, uma simetria perfeita, violentadas. Algumas dessas mulheres trabalhavam, mas na maior parte do tempo elas cuidam das crianças. Mulheres olham as crianças, os homens trabalham na fábrica de latão.

A mãe de Édouard foi mãe quase a contragosto, dessas mães que se tornaram mães cedo demais, aos dezessete anos. Os pais dela disseram que não tinha sido um comportamento muito prudente tampouco muito adulto. Teve de interromper seu curso profissionalizante de culinária e abandonou o sistema escolar sem um diploma. Tudo é assim no vilarejo, as mulheres fazem filhos para se tornarem mulheres, senão elas não o são realmente. 

Ela sempre exclamava que fez uma besteira, errou na vida, faria diferente se tivesse outra oportunidade. Ela achava que havia enterrado, sem realmente querer, um destino melhor, uma vida mais fácil e confortável, longe da fábrica e da preocupação permanente (ou melhor: da angústia permanente) quanto à gestão correta do orçamento familiar – um só passo em falso poderia significar a impossibilidade de comer no fim do mês. 

O que nem ela nem todas as mulheres do vilarejo pareciam entender é que suas trajetórias, aquilo que elas chamavam de seus erros, se encaixavam, ao contrário, em um conjunto de mecanismos perfeitamente lógicos, quase como se predeterminados, implacáveis. Elas não se davam conta de que suas famílias, seus pais, seus irmãos, suas irmãs, mesmo seus filhos, quase todos os habitantes do vilarejo tinham conhecido os mesmos problemas. 

Aquilo que elas chamavam portanto de erros eram, na verdade, a mais perfeita expressão do desenrolar normal das coisas.

O passado é a única coisa que a gente pode mudar, e tenho certeza de que algumas pessoas têm menos medo do futuro que do passado.

6.

Para alguém dissidente, a fuga é sempre inevitável. Édouard jamais sobreviveria ali. Ele ignorava a origem da sua diferença e essa ignorância o feria.

A princípio, a gente não pensa espontaneamente na fuga, porque ignora que exista outro lugar. A gente não sabe que a fuga é uma possibilidade. Em um primeiro momento, a gente tenta ser como os outros, e eu tentei ser como todo mundo. Cada dia era uma nova prece, porque a gente não muda assim facilmente. Não nascemos os durões que queríamos ser. A gente compreende, então, que a mentira é a única possibilidade para fazer surgir uma nova verdade. Tornar-se outra pessoa significava me tomar por outra pessoa, acreditar ser o que não era para, progressivamente, passo a passo, me tornar essa pessoa.

Longe, ele entenderia que, em outros lugares, uma mulher realizada é uma mulher que cuida de si, de si mesma, de sua carreira. Uma pessoa realizada não tem filhos tão logo, tão jovem. Ele aprenderia outros modos de viver, onde pudesse se expressar com as mãos, andar sem o corpo rígido, falar sem se importar em controlar as entonações e a voz aguda, desenvolver outros potenciais que não a força. Ele não precisaria mais repetir para si mesmo que eles tinham razão. Ele não precisava mais cultivar a esperança de mudar. Ele não precisaria mais odiar seu corpo por não o obedecer. Ele não precisaria mais se perguntar por que chorava sem parar, por que tinha medo do escuro, por que, uma vez que ele era um garoto, ele não o era realmente, e, sobretudo, por que se comportava dessa maneira diferente? 

Costuma-se dizer que fugir é difícil por causa da saudade ou das pessoas, fatores que nos prendem. Para quem é diferente e não se sente incluído em casa, talvez fugir seja complicado por outros motivos: porque o sucesso significa ser como os outros, porque é necessário inventar procedimentos próprios, porque é preciso aprender modos de vida menos desajeitados.

7.

É véspera de natal. Édouard caminha de volta para sua nova casa. Ele fugiu anos atrás, contudo, a solidão seguiu seus rastros e o acompanhou até ali. Um estranho o intercepta, puxa assunto, se apresenta, se chama Reda. Édouard não desconfia, ele quer se abrir porque nunca antes teve essa oportunidade, ele quer amar porque nunca antes teve essa permissão, ele quer estar junto de alguém porque passou tempo demais sozinho.

Reda se convida para ir à casa de Édouard. Eles passam a noite juntos e, no meio da madrugada, ele resolve ir embora. No bolso do casaco, carrega alguns objetos de Édouard, que só aí entende o que está acontecendo. Ele respira fundo e tenta confrontar Reda, mas o que se segue é uma tentativa de assassinato.

a história da violência
édouard louis
tradução de francesca angiolillo

tusquets / planeta
176 páginas

8.

História da violência pode ser encarado como uma continuação direta do livro anterior do autor, por conter desdobramentos dos acontecimentos de O fim de Eddy. As narrativas sobre homofobia, racismo, classe e pobreza continuam. Percebemos o que mudou ou não após o distanciamento de Édouard do vilarejo e da casa dos pais, principalmente no que diz respeito à relação com sua irmã. 

Contudo, o fio condutor dessas discussões é uma noite de terror que viveu em Paris, violentado física e sexualmente. Para narrar esse acontecimento, o autor expõe não somente sua voz, mas também o modo como seu cunhado ficou sabendo de tudo, as reações que seus amigos tiveram, as perguntas inconvenientes dos policiais, os procedimentos médicos invasivos. O sentimento geral é de confusão, com essa polifonia criando contradições e sentidos novos a cada mudança de foco, e de impotência, já que a história da violência deixa de pertencer a Édouard e passa a caminhar por pessoas distintas, cada uma interpretando o que aconteceu (e não viveu) à sua maneira, por vezes até colocando a culpa na desatenção ou na solidão do escritor.

No fim, o livro opera como um grande experimento sobre a linguagem do trauma. Como é possível usar as mesmas palavras que você usou pelo resto da vida após um estrangulamento? Como olhar a felicidade de outra pessoa e não duvidar dela depois de ser violado? Como olhar a tristeza de alguém e não duvidar dela depois de ser arrancado do seu próprio corpo?

Antes da violência, o significado de violência era outro. Antes da violência, o significado de medo era outro. Édouard poderá dizer “eu tinha medo”, mas essa palavra nunca será nada além de um fracasso, uma tentativa desesperada de recuperar a sensação, a verdade do medo. Sua linguagem jamais será como era antes.

Se a linguagem é própria do homem, então, durante aqueles cinquenta segundos em que ele me matava, eu não sei o que eu era.

9.

É da infância que vem essa obsessão. É por isso que às vezes me pergunto, quase obsessivamente, o que a criança que você foi pensaria do adulto que você se tornou? Eu penso no porquê de eu sempre ter tido essa sensação de que a vida se desenrolou fora de mim, a despeito de mim, e de que eu a vi se construir à distância e que ela não tem a ver comigo. Não é de hoje. Quando eu era pequeno e meus pais me levavam à igreja, eu olhava a todos, os encarava, olhava as roupas deles, o jeito como andavam, e dizia tomara que eu seja assim, tomara que eu não seja assim. E não teria nunca pensado em me tornar o que sou hoje. Nunca. Eu não teria nem mesmo pensado em não querer isso, ser esse alguém que não segura mais o choro.

Eu sabia que isso era ingenuidade, mas sei também, desde que li Édouard Louis, que a ingenuidade é uma condição para a fuga. Que sem ingenuidade não se foge. 

Quando há ingenuidade, há a crença de que, indo embora, podemos nos desfazer do passado, e não ter passado e não ter história é, portanto, não ter vergonha. Assumir todas as atitudes e posturas que secretamente queremos assumir, mas reprimimos, permitir todas as loucuras com as quais sonhamos e sufocamos, como trocar a cor do cabelo, andar de modo diferente, rir de modo diferente, fazer tatuagens, mudar o jeito de vestir, tudo que calamos por medo, mesmo coisas triviais, como almoçar fritura ou repetir a sobremesa. 

Quando há ingenuidade, há a crença de que, indo embora, podemos também salvar o passado, utilizar o depois para dar um sentido ao antes. Contemplar o sucesso é se fazer acreditar que tudo o que fizemos, que vivemos, que passamos, que suportamos não havia sido em vão, e que tudo tinha sido feito com um objetivo, um sentido calculado. Como se nada tivesse se perdido, que todos os seus sofrimentos e fracassos passados eram investimentos e sacrifícios. 

10.

Meu pai olha para meu sobrinho como se ele fosse uma nova oportunidade para sua hereditariedade nesse mundo onde os valores masculinos se erigem como os mais importantes depois de ter errado comigo, como se ele pudesse me corrigir através dele. Ele olha para meu sobrinho procurando suas semelhanças, tenta fazer meu sobrinho o imitar, oferece brinquedos que o conduz ao padrão, tira a camisa do meu sobrinho para que ele ande pela casa como um homem. 

Meu sobrinho é pequeno, não domina a linguagem, brinca com esmaltes, se pinta com batom. Às vezes, eu sinto medo por ele. Quando escrevo, digo tudo. Quando falo, sou covarde.