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Coleção de contos da Não Editora apresenta novos autores que escrevem em registros diversos, de documentos secretos a trocas de mensagens

Na última semana, a Não Editora, selo de literatura brasileira da Editora Dublinense, lançou uma pequena coleção de contos em versão digital batizada de Contém 1 Drama. São histórias curtas de pessoas que já conhecia, como Natalia Borges Polesso e Julia Dantas, e de nomes com os quais ainda não havia tido contato, como Rafael Bán Jacobsen e Ricardo Koch Kroeff.

A coletânea de resenhas curtas que se segue é uma forma de esclarecer não apenas minhas impressões sobre os títulos, mas também descrever melhor os gêneros textuais que foram abrigados no guarda-chuva “Drama”. É que, a cada título, eu tinha mais certeza de que as histórias contém muito mais que isso: são histórias melancólicas, histórias aterrorizantes, poemas que poderiam ser lidos como um guia afetivo de turismo, documentos secretos, conversas de whatsapp, rascunhos de letra de música… Ao fim de cada comentário, também enumero alguns tópicos principais que podem chamar a atenção de possíveis leitores, colaborando de forma singela com o marketing de cada título. 

São críticas construtivas. Espero que nenhum estagiário seja demitido com estes apontamentos intrometidos. 

Atenciosamente,
A Redação 

AQUILAE NON GERUNT COLUMBAS
alexandre rodrigues

37 páginas

9 EPÍSTOLAS
& 2 TELEGRAMAS

Numa realidade paralela, o território brasileiro foi repartido em três outros países após o que ficou conhecido como “O Grande Colapso”.
Terra Brasilis reúne o que eram as antigas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, à exceção da Bahia e da região do Pantanal.  No Sul, República de São Pedro, um país formado por Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai e boa parte da Argentina. Vera Cruz, o país com menos recursos naturais, é composto principalmente pelo Sudeste e Paraná.

Neste conto, Rodrigues especula os desafios desse futuro. Como seriam os conflitos migratórios? Como essa nova distribuição de espaços criaria rivalidades na economia? Haveria novas guerras pela expansão do espaço físico? É uma história que avança a partir de mensagens trocadas entre os representantes dos três países, num recorte específico de tempo. 

Contém _ xenofobia, longas frases em latim e uma biblioteca própria de referências inventadas.
Para quem gosta de _ diplomacia, histórias com final vago e distopias.

17 de abril
davi boaventura

29 páginas

1 FLUXO DE CONSCIÊNCIA
E ALGUMAS NOTAS ESPARSAS

É o dia em que deputados federais votam sim ou não pela abertura do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef. O clima no país mistura luto e festa – alguns com medo do futuro, outros celebrando com fogos de artifício, bandeirolas verde-amarelas e churrasco o pior que está por vir.

Neste conto, Davi Boaventura abre a mente de seu protagonista, que não soube recusar o convite de um churrasco naquele 17 de abril de 2016. Com sua escrita reconhecida pelas longas sentenças de muitas vírgulas – uma ideia seguida de outra ideia acompanhada de outra ideia – narra bem o que muita gente sentiu naquele dia, mas não ainda não sabia verbalizar.

Sem saber se fica ou foge, este homem mistura lembranças e compromissos familiares a notas mentais sobre o falatório no congresso. Uma sensação idêntica a uma ressaca de ansiolítico. Uma palavra mastigando vidro tentando forçar a próxima palavra a arrancar as unhas. 

Contém _ teatro político, pessoas que abandonaram redes sociais e filhos que ficam minúsculos diante de pais grandes e soberbos.
Para quem gosta de _ sessões de terapia, chorar em festa e perder. Todo mundo vai perder.

25 rua do templo
diego grando

33 páginas

2 POEMAS LONGOS

Este volume de 30 e poucas páginas de Diego Grando pode ser lido como um diário dos dias em que ele viveu em Paris. No poema que dá título ao livro, Grando narra uma noite de ano novo no exterior. Ali, precisa lidar com presenças e ausências, tempos deslocados, culturas sobrepostas. É possível não ser estrangeiro? Einstein deve saber, Freud não.

No segundo poema, intitulado “Palavra Paris”, o autor enumera do que é feita a cidade francesa: a quantidade de pessoas, de cidades, de ruas estreitas, de prédios antigos. A palavra Paris é onde cabem vinte mil cafés, oitenta e seis edículas, milhares de pedras nos ombros para construir uma igreja. 

Fotografias completam a experiência de viagem, inseridas entre os textos. Lado a lado, tudo cria um panorama afetuoso incomparável aos guias de turismo assépticos e impessoais. Imagino que verei uma placa enunciando que Diego Grando esteve aqui quando visitar Paris em 2029. 

Contém _ caminhadas ao ar livre, angústia e garrafas de destilados.
Para quem gosta de _ antropologia, geografia e arquitetura.

operatio buccellatum
eduardo krause

25 páginas

1 TRANSCRIÇÃO DE JULGAMENTO

Na presente quarentena, dezenas de pessoas inventaram de fazer os próprios pães. Fermentados naturalmente ou quimicamente, redondos ou esquisitos, de fôrma ou sem forma. 

Krause parte dessa atividade comum para imaginar as celebrações religiosas pós-pandemia. Neste peculiar exercício imaginativo, um taquígrafo narra o julgamento no Vaticano de duas freiras acusadas de desordem por servirem hóstias temperadas nas celebrações. O sucesso deste novo e artesanal Pão Vivo Que Desceu Dos Céus é estrondoso nas redes sociais, mas se transforma em heresia através dos olhos dos superiores.

A conversa entre as irmãs e os cardeais se transforma em comentários sobre a hipocrisia de instituições religiosas, que conservam apenas os costumes que não os ferem. O final surge abrupto e inesperado, mas bem-humorado.

Contém _ sal a gosto, páprica e pimenta do reino (de deus).
Para quem gosta de _ Rita Lobo, Masterchef e Papa Francisco.

sabrina é um nome bonito
julia dantas

23 páginas

1 FICÇÃO CIENTÍFICA

Após o suicídio do filho, uma mãe procura um policial para que refaçam os últimos passos do adolescente. É assim que descobrem Sabrina, a última pessoa com quem ele conversou em uma rede social. A história se torna uma corrida contra o tempo quando percebem que Sabrina parece ter encorajado o rapaz a se jogar do prédio, configurando um crime.

Dantas cria uma espécie de thriller quando dispara as informações pela metade e articula pontos de vista distintos. Lemos tanto a narração da investigação policial, as descobertas sendo feitas, o desespero da mãe diante dessa ausência recente, quanto as conversas aparentemente inofensivas entre os dois jovens. A tensão cresce a cada página e o entretenimento fica reflexivo a partir de dado momento.

Os jovens chamariam qualquer comentário além desses de spoiler.

Contém _ estatísticas do ano de 2001, referências à Bíblia e curiosidades aleatórias.
Para quem gosta de _ futurismo, internet e conflitos éticos.

o que é isso, menina?
natalia borges polesso

23 páginas

1 HISTÓRIA DE TERROR

Tudo começa com uma cena corriqueira: uma mãe e uma filha de mãos dadas. Até que a criança fala algo que não devia, um palavrão que nomeia uma parte do corpo proibida. Nunca mais diga uma coisa dessas, como que tu pensou isso, minha filha, não pode. Para demonstrar o que quer dizer, a garota leva a mão até lá, o que gera outra repreensão. A cena, que termina em sangue, fica na cabeça da garota por muito tempo. 

A partir daí, a narrativa dispara em direção a um entendimento do trauma. Acompanhamos essa protagonista por um longo tempo, passamos por diversas formas de terapia e compreensão ao lado dela. Experimentamos seus sonhos, nos sentimos parte dessa ojeriza, refletimos sobre nossas próprias vontades. O quanto de nossos receios de hoje foram criados de formas parecidas?

A tensão me lembra um conto de terror, um ser que assombra uma mulher, mesmo que ninguém consiga (ou não possa) o nomear. 

Contém _ orifícios, bocas enormes e escatologia.
Para quem gosta de _ sessões de terapia, interpretação de sonhos e arte contemporânea.

caligrafia do espanto​
Rafael Bán Jacobsen

19 páginas

1 HISTÓRIA DE AMOR

Um engenheiro precisa averiguar uma construção antiga como parte de seu emprego, uma chácara prestes a ser demolida. Nesse processo, imagens e cheiros do passado vêm à mente. Aquele era um lugar de sua adolescência.

Ali, viveu (ou quase viveu) um relacionamento que foi espantado pela perfídia dos comentários familiares. Contudo, em vez de alimentar desconfiança ou desprezo, as falas inflamavam a curiosidade e o desejo de comunhão dos primos. O ato de relembrar preenche o coração do personagem de afeto e melancolia. Entre festas, músicas, maresia e não pertencimento, tudo pesa. 

Jacóbsen escreve como quem sente saudade. É lindo.

Contém _ mensagens em hebraico, pedidos de misericórdia e árvores que escrevem.
Para quem gosta de _ pensar no passado irredimível, no presente desesperador, no futuro que jamais chegará.

um conto de aniversário
renata wolff

23 páginas

1 ESBOÇO DE FILME CULT

O cenário é atual: uma festa de aniversário com pessoas à distância, algumas numa sacada, outra na calçada. Depois, um reencontro de amigas de juventude, ambas usando máscaras. A partir daí, Wolff comenta o Brasil dos últimos anos.

No passado, as duas amigas foram simpatizantes do partido comunista, creram na mudança do país, se desenvolveram politicamente. Hoje, apenas uma segue na militância, enquanto a outra, a aniversariante, quer transformar a realidade por dentro: trabalha para o governo atual.

O enredo, que não deixa evidente desde o início para onde está indo, lembra curta-metragens cult, independentes, universitários. Tem bons diálogos e discussões sobre mudança (pessoal e social) e o cenário desesperançoso da pandemia que vivemos combina com isso. 

Contém _ utopias, distopias e desesperanças.
Para quem gosta de _ andar de carro, cenários urbanos e paredes decoradas com cartazes.

van gogh dylan
Ricardo koch kroeff

48 páginas

1 NARRATIVA PÓS-IMPRESSIONISTA
& 2/3 DE UMA LETRA DE MÚSICA

Robert (Bob) Dylan está derretendo.

Depois de receber um aviso premonitório da boca de Van Gogh, o músico decide parar de compor. A cada verso que escreve, Dylan fica mais velho. Robert sente que a própria face, sua máscara de Bob Dylan, está muito mal pintada. Ele até tenta fazer um na-na-yeah-na anasalado, ensaiar uma melodia ainda sem palavras com a boca-cigarro. Temos acesso, neste conto, aos versos que ele rascunha para caber nas gavetas da música. Porém, é preciso parar ou morrerá.

Kroeff tem uma escrita única, com palavras inventadas e uma apreensão forte de cores e texturas. É de uma visualidade tremenda, comparável à estética dos quadros mais famosos de Van Gogh com suas pinceladas impulsivas e tons vibrantes. Além disso, a forma combina com a narrativa, cheia de sonhos, alucinações e aparições súbitas. 

Contém _ cigarros, destilados, cafés de anteontem e outras drogas.
Para quem gosta de _ artes plásticas, música e as discussões que envolvem estes dois campos.

andre aguiar
é jornalista e pesquisador.