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ㅤㅤ ㅤdororidade

educadora explica como a sororidade precisa ir além da união de forças e ressoar no reconhecimento das violências de classe e raça

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dororidade
vilma piedade

editora nós
64 páginas

Vilma Piedade não é apenas a criadora de um conceito, mas também de um vocábulo novo, uma nova palavra… Dororidade. O Google não tinha nenhum registro até então, mas ainda sugere uma palavra semelhante, diz que quem busca fez confusão, aponta erro de grafia. Você quis dizer: sororidade?

Não, a intelectual brasileira cunhou um termo que agrupa uma tensão e uma angústia que a acompanham em sua vida, em especial dentro do movimento feminista interseccional. Em seu livro Dororidade, ela explica como a sororidade entre mulheres negras acontece de forma diferente, não apenas no reconhecimento do gênero, mas no reconhecimento das violências que as atravessam.

Durante seu percurso, Piedade aponta os números da violência doméstica no Brasil, evidencia como a vulnerabilidade acomete mais mulheres pretas que brancas e aponta formas e resquícios de colonialidade que ainda habitam o cotidiano do Brasil. Algumas dessas passagens foram anotadas a seguir para despertar o interesse na leitura.

1.
conceito de conceito

Para a filosofia eurocêntrica, a criação de um conceito vem a partir de uma ausência de clareza que perpassa uma temática contemporânea que embaralha e confunde sempre mais o sentido e o significados das coisas – criar um conceito é sistematizar uma realidade. Contudo, baseando-se na sua sabedoria ancestral e sua visão de mundo, Piedade apresenta uma ideia de Dororidade que passa pela multiplicidade e pelo movimento. O conceito não é algo acabado, pronto, imutável e descolado do seu tempo. É circular, nunca está pronto, definido. Sabendo ser ancestral de quem está por vir, a autora lança ao mundo um conceito que precisa ser criticado, produzir significados inesperados e despontar novas reflexões e discursos.

2.
pretoguês

Quando falamos em normas gramaticais, sistematizações do idioma brasileiro e na linguagem popular, de certa forma, estamos remetendo a lugares de privilégio ou de exclusão. O que é considerado culto e o que é considerado vulgar é passível de discussão e disputa ao longo do tempo, A língua é a arena da luta de classes. Ciente disso, todo o caminho interpretativo que Vilma Piedade realiza em seu texto é marcado pelo Pretoguês – as marcas da africanização do português falado no Brasil, termo foi cunhado por Lélia González – com o objetivo de salientar uma relação de contribuição com o pensamento culto se aproximando da fala que sofre discriminação. A fala e a escrita trazendo a marca do cotidiano e da tradição.

3.
sororidade

Sororidade, etimologicamente falando, vem de sóror, irmãs. A sororidade parece não dar conta da pretitude: foi partindo dessa percepção que Vilma Piedade pensou em outra direção, um novo conceito que, apesar de muito novo, já carrega um fardo antigo, velho conhecido das mulheres: a dor. Todavia, especificamente, a dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele. Quanto mais preta, mais dor.

4.
interseccio-nalidade

Se o feminismo enfrenta dificuldades para que mulheres ocupem espaços de poder constituídos, pense numa dificuldade ainda maior que mulheres pretas ocupem estes mesmos espaços. A relação entre mulher negra e poder é um tema praticamente inexistente, ausente, pois raça, classe e gênero se entrelaçam e criam diferentes tipos de opressão sobre essas mulheres. Raça informa a classe, classe informa a raça. Reconhecer este desafio é fundamental para compreender a importância de um conceito como Dororidade.

5.
colonização

A escravidão violentou os direitos, a língua, a cultura, a religião, os valores civilizatórios da população preta. A colonização coloca uma camada a mais ao analisar esse padrão de violência afirmando que pretas e pretos são mais “resistentes à dor”. Tornou-se rotina a resistência preta, feita todos os dias frente ao racismo.

6.
atlas da violência

Em dez anos, de 2005 a 2015, o índice de homicídios de não pretas caiu 7,4%. Já entre as pretas, cresceu 22%. Outro número da mesma pesquisa: 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil, em 2015, eram pretas. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Sororidade é uma prática necessária pois fortalece a todas as mulheres, pretas ou não pretas. Dororidade trata no seu texto, contudo, das violências que atingem mais uma parcela da população feminina que outra. 

7.
violência sexual

Sabe-se que o Machismo Racista Classista inventou que as mulheres pretas são mais gostosas, quentes, sensuais, lascivas. Abusos sexuais e estupros foram naturalizados nas senzalas. A dor cunhada pela escravidão, as marcas profundas ainda vivenciadas após a “abolição”, hoje, passam a ser estatística. Os dados sobre violência sexual falam disso. Mulheres negras sofreram 73% dos casos de violência sexual registrados no Brasil em 2017. De 2009 a 2017, o número de mulheres negras vítimas de estupro aumentou quase dez vezes segundo dados do Sistema Único de Saúde (SUS).

8.
silêncio

Dororidade carrega em si, ainda, uma violência que não é dita. O calamento. O lugar-ausência. O silêncio histórico. A invisibilidade do Não Ser sendo. Dororidade contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo racismo – e essa dor é preta. Dororidade é tomar novamente a narrativa, para que nenhuma preta esteja mais condenada a viver na ausência de si mesma, movidas pelas opiniões e desejos da branquitude. Superar essa dor, pertencer às ações e atitudes, conferir legitimidade.

9.
dor da perda

Outra dor constante que marca as mulheres pretas no cotidiano é a dor diante de uma perda. E, nesse jogo cruel do racismo, quem perde mais? Quem está perdendo seus filhos e filhas? De acordo com os dados do Mapa da Violência 2015, um jovem negro é morto no Brasil a cada 23 minutos. Anualmente cerca de 23,1 mil jovens negros são assassinados em todo o país, com uma taxa de homicídios de jovens negros quatro vezes maior que a referente a jovens brancos da mesma faixa etária, entre 15 e 29 anos.

10.
pobreza

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2015, negros e pardos representavam 54% da população brasileira. Entretanto, sua participação no grupo dos 10% mais pobres é muito maior, 75%. O racismo é imobilizador, pois sua função de existência é manter a branquitude enquanto projeto ideológico cada vez mais consistente. Olhar esta dor é importante para pensar o quanto racismo impede a mobilidade social e o fim da desigualdade.

11.
racismo religioso

No período da República Velha, o Candomblé foi proibido de exercer suas atividades e os Terreiros ficaram subjugados pelo poder, que limitava, coibia e interrompia as manifestações culturais, filosóficas e espirituais pretas e cultos de religiões de matriz africana. A capoeira, o samba e as casas sagradas eram criminalizadas pelo código penal brasileiro de 1890, mesmo que a Constituição Federal garantisse liberdade de crença e culto. Ainda hoje, acervos de peças sagradas confiscadas nessa época estão apreendidas e saberes ancestrais são silenciados por meio de invasões e depredações em Terreiro. O nome disso não é intolerância religiosa, mas racismo religioso, já que as religiões perseguidas tem cor. E essa cor carrega mais uma dor.

12.
poder feminino

Na tradição Iorubá, o corpo carrega axé, energia vital, energia que é colocada em movimento por meio da dança ritual. Dança que acontece em círculos, porque o pensamento é circular, nunca está pronto, definido. Eu me reconheço no outro, eu sou porque o outro existe, eu sou porque você me reconhece – é esse o princípio filosófico. A história é dinâmica e a fila anda. Por meio da dança, o corpo é um território livre; um corpo que dança não tem correntes, mesmo tendo sido marcado a ferro e fogo pela escravidão, mesmo que essa marca seja reforçada cotidianamente pelo racismo. Entrar na roda é dançar com a resistência, tradição e desconstrução, preservação de valores. Reconhecer a dor é dançar com todas as mulheres, com o toque do tambor, com o girar das saias, com inclusão e respeito, por uma democracia feminista.