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discoteca selvagem

cecilia pavón

tradução de clarisse lyra e mariana ruggieri

jabuticaba edições

leia a transcrição

querida cecilia,
escrevo agora de uma padaria. uma padaria comum no meu bairro, não é nenhum desses cafés revolucionários onde se discute o futuro do mundo. estou com fones de ouvido mas escuto a conversa de mãe e filha aqui ao lado. a criança come um pão de queijo, a mulher apenas toma um pingado. quando cheguei elas já estavam aqui, então não entendo bem de quem são os presentes que estão escorados no balcão. só ouço a empolgação da menina, desejando um bolo confeitado.

 

te ler tem me ensinado a olhar esse comum. ficar atento a essas cenas que passam desapercebidas no dia a dia. fica mais fácil olhar para essa parede descascando, o vestido florido de azul e rosa da senhora ao lado, o tradicional copo americano com café quando sou guiado assim, quando me inspiro assim. geralmente, na correria, sempre penso que a poesia está em outro lugar, mas ela também está na minha casa. a poesia pode ter tantas formas quanto existem: poesias quadradas, poesias redondas, poesias pontiagudas, em forma de coração, de biscoitinhos, de água, de listas, de roubos, de esculturas, de cartas.

penso nos seus poemas como esse relato do infraordinário, do mais ralé e, justamente por isso, mais importante. todo mundo sabe de alguém que teve uma bicicleta roubada, quis ler mais nas férias, gosta de gastar dinheiro. a poesia mais abrangente me parece a mais difícil de ser escrita. o horário da aula, o filho que cresce na barriga, as coisas se espatifando, as regras da poesia contemporânea. tudo isso escapa. poesia é como oxigênio, envolve o mundo enquanto eu estou aqui agora, triste, ansioso e preocupado, esperando meu pão na chapa ficar pronto.

subverter esse olhar, deixar de narrar as grandes epopeias e dar importância àquilo que é menor e cotidiano, é a grande selvageria. há algo de vanguarda em fazer poesia sobre papéis de presente, conversas ouvidas com o canto do olho, canetas que caem do outro lado do balcão e fico sem graça de pedir para me devolverem. essa é a grande radicalidade, aquela que é a mais pura e fantástica.

te ler, cecilia, me faz bem. de alguma forma, me faz sair de mim. me faz estranhar cada gesto, movimento, percepção. me reconecta com a poesia, porque me reconecta com a própria vida.