a história do
ㅤㅤ princípio, do
meio e do ㅤfim
valeria luiselli cria uma história sobre o mercado de arte por meio de círculos, elipses, parábolas, hipérboles e alegorias
a história dos meus dentes
valeria luiselli
tradução de paulina wacht e ari roitman
alfaguara
166 páginas
1.
Gustavo Sánchez Sánchez nasceu com uma dentição prematura, que logo foi substituída por uma outra ainda desajeitada — dentes largos que apontam cada um para um lado. Contudo, também tem uma boa dúzia de habilidades que podem o ajudar a realizar o seu sonho de trocar de dentes: ele sabe contar a ordem numérica em japonês, interpretar mensagens de biscoitos chineses da sorte, boiar de costas, imitar Janis Joplin (depois de duas cubas-libres), colocar um ovo em pé numa mesa e, principalmente, uma oratória imaginativa que faz dele o melhor leiloeiro do mundo.
Suas técnicas variam da descrição mais objetiva do objeto a ser leiloado (método circular) a uma versão exagerada, que não depende de nenhum tipo de variável ou contingente (método alegórico, desenvolvido pelo próprio Sánchez Sánchez). Aos poucos, ele vai fazendo seu nome, viajando pelo mundo, adquirindo novos objetos para sua coleção pessoal, lidando com personagens excêntricos e situações estapafúrdias… Até que encontra aquilo que sempre desejou: os dentes de Marilyn Monroe disponíveis para lances. Ele, lógico, arremata e troca, finalmente, sua dentição.
Fim da história.
2.
A História dos Meus Dentes é a história dos dentes de Gustavo Sánchez Sánchez.
Mas também é a história de suas viagens,
das abordagens de leilão que aprende ou cria,
dos objetos que coleciona,
da esposa Magra que engorda muito depois do casamento,
do filho abandonado que compra Sánchez Sánchez,
de biscoitos chineses da sorte,
de um leilão dedicado a idosos de um asilo,
da Chapeuzinho Vermelho (de trás para frente),
de seguranças de galeria de arte,
de assaltos a galerias de arte,
de escritores latino-americanos em geral,
do ghostwriter que é contratado para escrever a história dos dentes de Sánchez Sánchez,
de Valeria Luiselli sendo contratada para escrever uma história para um museu de arte administrado por uma fábrica de sucos,
de uma fábrica de sucos,
de uma linha do tempo,
de círculos,
de elipses,
de parábolas,
de hipérboles
e de alegorias.
E a história de objetos de arte.
3.
Essa semana um vídeo apareceu na minha timeline compartilhado por uma colega que desenha de um modo, digamos, realista. Nele, um homem aponta o quão ruins são as obras de arte modernas, por não terem sentido ou não apresentarem nenhum tipo de significado explícito – por não representarem uma realidade inteligível, como os desenhos realistas, por exemplo. Para ele, o establishment da arte só cultua quadros onde a tinta parece que foi vomitada ou está disposta de uma maneira totalmente aleatória (como quadros inteiramente azuis, exceto por uma linha reta branca que o divide em dois) para se vangloriar de entender quadros que a grande massa não compreende. Desta maneira, estaríamos cada vez mais perto de uma “arte invisível”, onde as pessoas pagariam para ver uma parede em branco.
Eu entendo o ponto da discussão que ele levanta, mas não concordo com a postura extremamente violenta que ele traz para questionar quem mensura o valor de uma obra de arte. É claro que o establishment da arte pode se apoiar em panelinhas ou em critérios confusos – inclusive, a obra A Fonte, de Duchamp, citada no vídeo como um exemplo de “arte ruim” criticava exatamente a mesma coisa que o tal youtuber lá em 1917.
Mas a arte não é criada, pautada e, principalmente, sentida de formas extremamente subjetivas? Como este homem deseja criar padrões objetivos para julgarmos o que é uma arte boa ou ruim se a arte costuma provocar sensações diferentes, individuais? Quanto deveria valer uma obra de arte? O que é arte?
4.
Um dia, uns gregos concordaram em dizer que só poderia ser considerado belo aquilo que é útil. Depois, outros gregos discordaram e disseram que toda representação da natureza é bela. E outros afirmaram que somente a natureza é bela, representações são falsas.
Se as formas geométricas de Mondrian, as tintas aleatórias de Pollock e um mictório qualquer hoje são considerado “belos”, não estaríamos caminhando justamente para uma diminuição de barreiras do conceito de arte? Se obras de arte que, na aparência, são consideradas “facilmente reproduzíveis” são consideradas legítimas, talvez estejamos caminhando para uma democratização das formas de expressão, certo?
Em outras palavras, como o grande Quintilian certa vez dissera, usando minhas hiperbólicas, eu poderia restaurar o valor de um objeto por meio de "uma elegante superação da verdade”. Isso significava que as histórias que eu contaria sobre os objetos seriam todas baseadas em fatos por vezes exagerados ou, para dizer de outro modo, mais bem explicados.
5.
O valor de uma obra de arte é justamente o tema de conversa que Valeria Luiselli consegue iniciar em A História dos Meus Dentes. Quando Sánchez Sánchez troca os termos, mistura acontecimentos, adjetiva os objetos que leiloa e exagera na construção de suas frases ele pode não estar sendo totalmente honesto para algumas pessoas. Mas, para outras pessoas, aquelas que escolhem acreditar no que ele diz, os lotes se tornam as próprias histórias.
É através das histórias que um dente deixa de ser um dente e se torna uma perturbação para Virginia Woolf. Um quadro com um cavalo se torna um tópico de discussão para Alan Pauls. Uma perna protética se torna uma arma para Unamuno. Um bonsai se torna uma tentativa de suicídio para Alejandro Zambra.
A História dos Meus Dentes é uma história sobre palavras.
Pois o mundo é feito de palavras, de significados que damos às palavras e de todo o poder que damos às palavras.
6.
“Um homem pode se chamar John porque esse era o nome de seu pai; uma vila pode se chamar Dartmouth porque está situada na embocadura do rio Dart.
Não há, porém, nada na significação da palavra John que implique que o pai da pessoa assim chamada também possua esse nome; tampouco na palavra Dartmouth, para que essa vila esteja situada na desembocadura do rio Dart.” – J. S. MILL
7.
É desse amor por palavras que surge esta revista e este texto e talvez a experiência de muitas pessoas. Pois acreditamos que as palavras mexem conosco e que mexemos de volta com as palavras.
Continuamos vivendo porque escolhemos acreditar nas histórias e acreditar no poder de mudança que as histórias tem. Existimos porque escolhemos ser enganados pelas parábolas, pelas hipérboles e pelas alegorias.
Estamos aqui porque a literatura e a arte unem as pessoas e nos mostram como lidar com as pessoas e diante das pessoas. Estamos aqui porque a arte nos enche de sentidos e esses sentidos precisam transbordar de alguma forma.
8.
A gente se incomoda com o que o mercado de arte valoriza, mas esquece que existem valores e histórias e palavras para definir todas as obras de arte foram deste circuito limitado também. A arte está em todo o lugar e nós podemos significar, consignificar e ressignificar cada objeto, cada quadro, cada performance, cada mictório, cada livro escrito.
A História dos Meus Dentes é um romance-ensaio que mostra o valor de uma história, o valor da arte e como ela está sendo o tempo inteiro fruto de apropriações e usos novos.
Porque toda arte é feita do mesmo material que as pessoas são.
9.
Palavras.