TUDO ERA
LIVREㅤㅤ E VIVO
E DESORDENADO
o que fazer quando um livro desnuda o leitor? este diário de leitura é um registro pessoal de “controle”, de natalia borges polesso.
controle
natalia borges polesso
companhia das letras
176 páginas
dia 1
a bicicleta sobe e desce as rampas, o relevo do chão faz o corpo de maria fernanda tremer, seu corpo se sente potente, ela acelera mais, faz a volta mais rápida de todas na pista recém-construída – e derrapa, quebra os braços, falta o ar, o corpo dói, vomita de dor enquanto canta a ópera. a given end to your dreams.
we’re like crystal
we break easy
e, a partir desse instante, a super proteção, a auto sabotagem, o isolamento imposto por sua condição descoberta: epilepsia. there’s no escape so few in fear. o violão escorado e a poeira o enchendo, os fones de ouvido bloqueando o mundo, os pais, os colegas de escola. suas pernas estranhas já não dançavam nem corriam, apenas sustentavam um tronco corcunda. precisava oxigenar as ideias, mas o ar não entrava, apenas passava por ela, a vida passando ao seu lado e ela deitada. quem não se levanta evita quedas.
if you like a sleeping demon
listen
can you hear him weeping
e, a partir desse instante, respiro e sigo com essa protagonista, meu corpo sequestrado para dentro da narrativa. me coloco entre seus três amigos – joana, alexandre e davi – e me confundo com essa narradora. me vejo nessa internet lenta demais, nas conversas que não fluem, no papel como único companheiro, e, pior, numa vida vivida sem muito interesse, um aquário impossível, janela pra uma realidade vasta que não alcanço. como uma escritora pôde criar alguém tão distante de todos, contudo, tão dentro de mim?
De minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz. Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, durante aqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.
dia 2
como você lida com histórias e personagens que te obrigam a revisitar sua própria vida?
eu olho para nanda e ela me faz um convite – olhe para o seu passado, sua infância, essa grande memória aquosa onde você afundou sua história. passeio pelo meu próprio corpo e não vejo marca alguma de que vivi. não há nenhuma cicatriz, nem de acidente, nem de cirurgias. nenhuma brincadeira jamais deu errado. gostava de tanta coisa simples e besta. tomar banho sentado no chão, com o ralo fechado para formar uma pequena piscina. inventar vozes para cada personagem dos gibis que lia. brincar de coisas que envolvessem papel e caneta e jamais precisassem que eu saísse de casa. comer apenas arroz em um dia, apenas feijão em outro, acreditando que, de certa maneira, estava equilibrando as coisas – mas não.
não consegui entrar na vida. nenhum amigo jamais conheceu meu quarto. nunca aprendi de verdade a andar de bicicleta: foi falta de coragem, falta de prática, falta de manha, tanta coisa a menos. minhas pernas jamais dançaram, apenas tremem de medo – o sismo interno dos comentários maldosos, do medo de rejeição, de causar mais problemas além da minha existência inadequada. essas preocupações invisíveis na minha pele, mas ainda muito marcadas dentro.
quando eu não sei dos meus desejos imediatos, como posso entender a urgência do outro?
nada foi resolvido ou está resignado, ainda permaneço no mesmo lugar. não alcanço a realidade. é enorme. me esmaga. é tudo vasto demais.
choro coisas velhas, proibições que eu mesmo me dei, fantasmas, lugares que eu nunca pisei, anos perdidos, ausência de amigos e de amores. quando será que vou me tocar de que não posso viver me preocupando em tornar apenas a vida dos outros segura? por quanto tempo alguém consegue se privar do que se é para que ninguém se choque, ninguém me confronte, ninguém perca o controle que eu já perdi há muito tempo? eu vejo tantas condições para esse amor incondicional… será que um dia conseguirei pegar uma bicicleta e sair correndo por aí, sem rumo, ou com um rumo muito bem delimitado, em direção ao lugar que sempre quis estar?
Eu disse que não importava, mas importava, sim. Parece que fiquei com um monte de lacunas para completar. E eu não sabia com que completar.
Porque às vezes
a gente não sabe mesmo como se sente, não sabe de nada, nunca por completo, mas seria bom falar sobre isso realmente.
dia 3
é só o primeiro romance da natalia borges polesso e ela já me toma. essa sensação de que ninguém tem o controle sobre nada. jamais existiu garantia alguma sobre a vida, sempre desordenada e livre. estar vivo é correr riscos.
e, então, maria fernanda pega a bicicleta de uma estranha e sai correndo.
a verdade é que sempre sobra pouco para todo mundo, independente das histórias, dos traumas, das conjunções. não ter uma condição como a epilepsia jamais me impediu de sofrer com preocupações exageradas da minha família, de observar estático cada colega de infância ir se afastando lentamente ou com pressa, de ver um casamento perder uma aura de perfeição que antes tinha, de me resguardar dentro de mim mesmo para não ferir ninguém. mesmo esse ato deliberado, a decisão de me esconder do mundo, não me privou de me sufocar com tudo que coloquei no lugar mais fundo de mim – os medos e os desejos, as aflições e os planos.
a vida ainda pode ser boa. a gente ainda pode sair por aí, viajar sem aviso, conversar com estranhos, experimentar um ácido, se abrir para quem nem se importa, desmarcar todos os compromissos e sair pra ouvir o som da sua banda preferida ao vivo, começar a falar mesmo que você não saiba onde a frase vai terminar.
respirar fundo.
abrir mão de qualquer resultado pré-determinado.
deixar a euforia tomar conta pelo menos por um segundo.