o coice da égua
valeska torres
7letras
leia a transcrição
o coice da égua é um livro com cheiro, gosto, textura, barulho. caminhar pelos versos da valeska torres é ouvir os gritos na feira, os instrumentos no açougue, o embolo das vozes no engarrafamento. o cenário aqui é essencialmente urbano em todas as suas caracterizações – os viadutos, os pombos, as enchentes.
a água de bosta. o mijo entre as pernas. o ônibus lotado às seis. essa periferia vai sendo corroída pelo barulho dos helicópteros, pelas mortes de jovens negros pela mão da polícia, pelos buracos de desova. a violência deixa esse cheiro azedo, uma ferida inflamada, uma cratera aberta nessa cidade desigual e brasileira.
a construção desse espaço em cólera, contudo, extrapola para as existências que pertencem a esse bairro. a mulher acaba tendo sua subjetividade negada, lida como suja e impura quando transita no espaço público. a cidade é o corpo. a margem é a mulher empapada de saliva. a mulher que rebola. a mulher que goza. para ser considerada limpa, é preciso alisar o cabelo, passar talco, disfarçar o cheiro de formol, aceitar ser tratada como carne, concordar com um amor sem míngua nem casa. essa mulher procura e até encontra afetos, mas que às vezes levam apenas a uma outra forma de violência, de carência, de abandono. se sentir acuada? não. ser de menos já é demais.
valeska torres toma toda a ideia de impureza que tentam associar ao corpo feminino, ou na verdade, à sexualidade feminina – os pelos, os líquidos, o zíper que arrebenta, a malícia e a reinsere num lugar de revide. de punho firme, espingarga, fogueiras, incêndios, churrasco.
a raiva aqui é um substantivo feminino, é a energia dessa sobrevivência, associada a um motor que serve não para transformar a realidade, que não dá conta de mudar estruturas, mas que cria a coragem necessária todos os dias. de andar de ônibus apesar do assédio, de trabalhar num emprego que não paga o suficiente, de conviver com homens brancos, de ir para o abate do capital. nessa toada, o coice é a imaginação da vingança, de uma justiça tardia – os porcos finalmente assassinando os fazendeiros de suásticas estampadas nos peitos.
é preciso fôlego para viver esse cotidiano – e valeska torres cria isso muito bem com versos muito longos, extensos, quebras que ocupam o espaço da página enorme de maneira pouco usual mesmo na literatura contemporanea. é um desses casos em que o papel e a voz vão ao limite.
eu pensei bastante se fazia sentido gravar esse episódio sobre o coice da égua porque valeska torres é uma artista da performance, da voz, do vídeo, do corpo também. no youtube e no perfil da valeska no instagram é possível encontrar outras leituras, muito mais condizentes talvez com a proposta do coice da égua, a artista presente subindo e descendo, dançando, a tipografia em tamanhos diferentes do papel ganhando com ela toda uma modulação, outro tom, outra marcação de sílabas… confiram, vou deixar todos os links e caminhos na descrição desse episódio.
mas a leitura aqui agora vai ser uma leitura em outra voz, em outro gênero, em outra cor – mas enfim, se esse programa existe é porque acredito que a literatura, a ficção também devem se permitir criar algumas leituras outras que não deixem que a poesia produzida por mulheres negras se torne uma literatura de nicho, lida e comentada apenas pelas pessoas que se identifiquem diretamente com essas poetas. e é papel de homens e de brancos ler, difundir, fazer circular essas autorias também.
sentir o urro e o esmurro com a própria leitura.