a tensão
ㅤㅤ superficial
das ㅤbordas
“cinco ou seis dias”, romance de danichi hausen mizoguchi, apresenta questões sobre política e trabalhos por meio de dois amigos reconhecendo o mundo após a conclusão da faculdade.
1.
Enquanto os outros ali vão se apresentando, Dante tenta inventar alguma resposta plausível para a pergunta feita para iniciar o primeiro semestre. Por que você escolheu essa formação? As pessoas na sala seguem dando suas justificativas – uma vocação íntima, uma tradição de família, o desejo de entender a mente humana, a vontade de ajudar pessoas a viverem melhor – e nenhuma gera identificação no rapaz que só está naquela sala porque Psicologia era um curso fácil e com pessoas bonitas.
Ele só encontra um motivo plausível, o motivo que o faz permanecer naquele espaço, anos depois, quando ele amadurece, quando o abismo entre ele e a criança que foi se torna enorme, depois dos trotes, depois das primeiras teorias, depois de conhecer Maria, ler muitos livros difíceis, deixar alguns hábitos para trás, deixar alguns amigos para trás, dialogar com movimentos sociais, assistir filmes que todo mundo já havia assistido menos ele, conhecer novas bandas, frequentar outros bares, descobrir outros bairros de Porto Alegre, rever suas próprias posições, se perceber como indivíduo e como coletivo, mudar sua alimentação, experimentar algumas drogas, passar cinco ou seis dias isolado de quase todos que conhecia e, principalmente, depois da amizade com João.
2.
Porque uma universidade, geralmente, é muita coisa além de uma universidade. A sala de aula é uma parte pequena do processo, porque se formar também passa por mudar de cidade, conhecer pessoas que você jamais conheceria se ainda estudasse naquele bairro, conhecer teóricos que você jamais leria se ainda estudasse naquele bairro, frequentar festas com bebidas de procedência duvidosa, fazer todas as refeições num restaurante a dois reais, dividir livros numa biblioteca pública, se mobilizar em torno de temas que você até então desconhecia, como reparação histórica, alimentação orgânica, feminismo interseccional, revisar tudo que você sabia sobre gênero, sexualidade, identidade, questionar tudo que você sabia sobre crença, ideologia, política, entender que tudo pode ser outra coisa, tudo pode ter outro significado, dependendo de quem lê a palavra, de onde veio essa pessoa, a quais informações ela teve acesso.
Com sorte, ao fim de quatro ou cinco anos, você poderá se ver ao lado de quatro grande amigas e com uma cicatriz no nariz.
a onda começando a bater, o riso de todos puxando o riso de todos, as coisas muito lindas e muito engraçadas em revezamento, a eternidade em um grão de areia, a beleza de um mundo se tornando outro junto aos amigos, que era tudo o que eles queriam desde que passaram a dizer nós.
3.
Cinco ou seis dias apresenta dois amigos reconhecendo o mundo após conquistarem o diploma de uma faculdade. Depois de discutirem tantas questões dentro dos muros da universidade, chega o momento em que finalmente poderão praticar o que os volumes e manuais ensinaram, o que as discussões acaloradas instigaram. Dante e João saem afoitos das mesas de estudo, mas encontram a Porto Alegre dos anos 2000, marcada tanto pelo primeiro brasileiro operário alcançando a presidência quanto por vários casos de corrupção, como o mensalão nacional e as fraudes no Detran gaúcho.
Para alguém inexperiente atingir qualquer objetivo, o importante é começar pelas bordas. Tal misto de curiosidade e incerteza que os dois personagens têm em relação ao futuro vai marcar a forma de cada um lidar com essa nova experiência — é nesse ponto que o romance de Danichi Hausen Mizoguchi se apoia, as vidas de ambos ora caminhando paralelamente, ora convergindo para o mesmo cenário, quando acontecem as disputas, conflitos, discussões acaloradas.
Olhando para sua família (abastada), sua criação (quase apolítica), seus amigos de infância (já bem-sucedidos), Dante tenta ligar o dinheiro a seus propósitos pessoais, quer dissolver o sistema por dentro, iniciar um movimento que seja tanto lucrativo para si quanto transformador para a cidade e as pessoas. Sem perceber, encarar a si mesmo como um self-made man ou algo do tipo, projetar-se como alguém do bem, sensível, esclarecido, ganhar contatos, dar entrevistas, entrar em festas exclusivas.
Do lado oposto, João não aceita que o amigo se corrompa dessa forma. Exige que qualquer causa seja enxergada com a seriedade que exige, uma profundidade que não cabe em uma camiseta ou um stencil. Parece disposto a recusar todos os empregos que pagam bem mas vão contra a lente comunista com que enxerga o mundo, contudo, também não encontra nenhum emprego que pague mal e o permita detonar os padrões.
É o passado de João que o inspira a tomar atitudes drásticas: seus pais, militantes, proporcionaram desde a infância seu convívio com questões políticas, econômicas, ideológicas. Ouvia histórias reais de pessoas que morreram, desapareceram, foram torturadas durante a ditadura, descobria enfoques esquerdistas para questões do mundo como o movimento de liberação sexual, as guerras internacionais, os assassinatos de políticos famosos. João recorda exatamente onde estava quando o muro que dividia a Alemanha em duas foi derrubado, quando Fernando Collor de Mello foi eleito presidente, quando Nelson Mandela foi libertado da prisão depois de 27 anos. É impossível para ele não se sensibilizar com todas as histórias das gerações anteriores, que lutaram contra o status quo de formas muito mais enérgicas que a criação de uma campanha publicitária de guerrilha.
É por isso que João necessita furar a bolha, sair de casa, experienciar uma vida mais real que a real — e a narrativa avança para um registro pouco visto na ficção brasileira.
4.
Porque uma cidade, geralmente, é muita coisa além de uma cidade. Você pode encontrar toda semana o mesmo casal se for sempre ao mesmo bar, mas, na outra esquina, a cidade carrega outros bares, outros casais, outros drinks, outros rótulos de cerveja. E são muitas as esquinas, os meio-fios, as calçadas, as bifurcações, as linhas de ônibus, os bairros distantes do centro, os entregadores de aplicativo, os supermercados, os restaurantes, as empregadas domésticas, os executivos de terno, os carros engarrafados, os parques naturais, os museus em reforma, os palcos espremidos, os políticos em exercício, os recursos desviados, os livros lidos nos metrôs, os guarda-chuvas esquecidos em táxis, os postes de iluminação, os postos de saúde, as casas antigas, os prédios espelhados, os terrenos baldios, os cartazes em postes, trago a pessoa amada em cinco dias, mais amor por favor, crédito disponível agora, gatinha perdida, ofereço recompensa, aluga-se casa, procura-se diarista, são mesmo muitos os cartazes, os caixas eletrônicos, os montes de entulho, os chinelos arrebentados, as crianças indo pra escola de máscara, as professoras com medo e felicidade e medo.
Com sorte, ao fim de quatro ou cinco anos ou cinco ou seis dias, você poderá encontrar cada uma dessas coisas, todavia, eu duvido.
a vida era isso, convites, bifurcações, apostas frustradas, sonhos perdidos, limites, a vida era aquilo que nos fazia chorar, a vida era aquilo que não tinha saída, a vida era aquilo que nos fazia correr sem saber pra onde,
5.
Nesse romance, Mizoguchi deforma no espelho esses dois jovens para que eles se equivalam sem deixar de serem distoantes. Suas questões em relação ao que significa mudar o mundo e como fazer isso vão ocupando a página de forma absoluta, numa escrita imersiva, de frases longas e muitas vírgulas, que apresenta com eficiência a ansiedade dessa geração que parece ter as mãos cheias de vontade, porém, vazias de oportunidade.
Cinco ou seis dias representa bem a ideia de que mais conhecimento não quer dizer necessariamente um futuro melhor. Temos mais informação do que nunca, mas continuamos reprisando erros de outras gerações, ou pior, nem sempre reconhecemos as brechas que aqueles que vieram antes deixaram. Tudo parece sólido para algumas pessoas, entretanto, outras enxergam como tudo se estrutura sob uma mínima película. Qualquer millenial minimamente engajado pode se relacionar e compreender as contradições nas quais os dois protagonistas estão absortos. É possível lutar pelo que se acredita e conseguir se sustentar simultaneamente?
Como quebrar heranças? Como romper padrões? Como enfrentar grandes corporações? Dante e João querem um mundo melhor, mas discordam dos meios – e o livro é cheio deles. Dante criando projetos inventivos para incentivar as pessoas a sonharem. João dialogando olho no olho com pessoas em situação de rua. Dante projetando como o capitalismo pode ser transformado com iniciativas horizontais, menos burocracia, empoderamento de pequenos empreendedores. João provocando os próprios colegas sobre propriedade privada, relações não monogâmicas, falta de representatividade. Dante promovendo eventos pela retomada do espaço público. João abandonando tudo para ser o espaço público.
Se os fins justificam as experiências, a resposta é suspensa. O recorte do autor é preciso para expor contradições, provocar reflexões, despertar a sensibilidade de quem lê sem oferecer respostas prontas, vereditos, conclusões. É sempre possível descobrir uma cidade nova, enxergar de novo e mudar de rota, mesmo que a vida, enquanto corre, dê a sensação de esgotamento e impossibilidade. Cinco ou seis dias, escrito entre os erros de um e os acertos do outro, deixa sobressair a certeza de que o caminho deve ser construído coletivamente e que esse caminho não é um único caminho – porque um caminho, geralmente, é muita coisa além de um caminho.