Dias quentes não são seguros, porque o mundo vai acabar no verão. Você não viu, não vê da sua janela os focos de fumaça? Um dia isso tudo vai queimar, vai estar quente e será quinta-feira.
Mas não se engane, por enquanto todos os dias são segunda, hoje ainda é como ontem e amanhã não será o fim. Os cães vão abrir quantos buracos forem necessários em busca de terra fresca e nós vamos cavar.
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É necessário saber que PRIMEIRO
existem muitas formas de cavar a terra: cavar com luvas, cavar com pá, cavar com enxada, cavar com retroescavadeiras, cavar com as duas mãos e os dez dedos.
e SEGUNDO
existem muitos motivos para cavar a terra: cavar para criar barragens, cavar para enriquecer, cavar para enterrar vítimas, cavar porque sim, cavar para sobreviver.
Escolher as ferramentas e ter um objetivo é essencial, ainda que algumas pessoas não tenham opção.
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Ler “Motivos para cavar a terra”, de Lilian Sais, é aprender a colocar o dedo na ferida pra nunca mais tirar. É enxergar a poeira do fim: na terra fresca que não existe mais, na fumaça que toma o lugar das árvores, no governante que se comporta como messias. Mas é, também, encarar a terra e encontrar as ferramentas e os objetivos para continuar existindo.
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Não escolher o que se faz e ainda assim fazer com esmero e apuro. Essa ideia ressoa em vários dos poemas do livro, como uma espécie de conciliação entre o que se quer, o que se recebe e o que se pode fazer. Para citar a própria Lilian Sais, em Uma baleia nunca dorme profundamente: “A gente faz como pode e não mais que isso”. Talvez, essa seja uma maneira bonita de viver: olhar para si e para o mundo com esmero e apuro. Aceitar que foram dadas apenas duas mãos e dez dedos. Enterrar os mortos, mas enterrá-los por completo.
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É o que nos foi dado: um planeta seco, um país traumatizado, um fascistinha de merda e uma terra árida. E a gente faz como pode. Como cães escavando para encontrar terra fresca. Não, nada de tesouro, apenas terra fresca, apenas um milagre, alguém para conversar até o fim da poeira da demolição do mundo.
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A terra a todos une. O que cabe a qualquer um é cavar, semear e colher o trigo no pequeno pedaço de terra que duas mãos e dez dedos são capazes de cuidar. Depois nem isso, depois haverá apenas um buraco proporcional ao próprio corpo. É possível ignorar a cova, mas depois de ter lido Lilian Sais, não recomendo.
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A terra está esburacada, é fogo e fumaça. A gente faz como pode. O milagre existe, é alguém, é a falta de uma palavra melhor. Assim se vive em um mundo acabando. Os dias são todos segunda, são sim um acúmulo de poeira. O fim vai chegar quando for quinta-feira e apenas o fim é perfeito. Nós vamos morrer pra aí entender quem somos.