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os tais caquinhos começa com a descrição do apartamento mais sujo do mundo: pilhas de caixas de papelão que encharcavam na chuva na varanda, livros que esfarelavam com o tempo, montes de mofos, esquadrias enferrujadas. roupas sujas jaziam na área de serviço, os azulejos rachados e amarelados. quadros por pendurar, louças desencontradas, panelas que já perderam suas tampas. poucos móveis, com camadas de poeira e gordura. nenhum sofá, o que parece um absurdo para uma casa de família. aquele era um apartamento onde as baratas não se sentiam acuadas, os insetos dormiam tranquilos nas xícaras e gavetas, os cupins se aninhavam e se reproduziam.
essa descrição obsessiva e detalhista é feita por abigail, a narradora dessa dramédia de formação que é o livro. é difícil falar dos tais caquinhos porque foi um livro que me impactou muito. em muitos sentidos diferentes. pra começar, justamente por essa casa. onde vivem a abigail, seu pai, lúcio, e a irmã, berta.
essa é uma família disfuncional, onde todos parecem meio deslocados na presença uns com os outros, mas ao mesmo tempo sabem se sentir parte, pertencentes, até dentro do silencio.
a abigail sempre observa as casas dos vizinhos e comparando o seu apartamento. é como aquele ditado – a grama do vizinho é sempre mais verde, mas nesse caso, a grama do vizinho é sempre mais limpa, menos desorganizada, mais cheirosa, mais clara em termos de janela, mais ventilado, tem vistas melhores, menos caixas de papelão, menos baratas, menos sufoco, menos mofo. o apartamento sujo cercado por quintais lavados com fortes jatos de mangueira e um condomínio grã fino cheio de vida e samambaias.
a gente entende então quando essa casa vai se tornar sufocante para a berta, a irmã, que vai começar a passar dias inteiros com a mariana, em outra casa, na casa da amiga. e aí aos poucos a berta vai se afastando para ser incluída nessa outra família, que tem dinheiro pra viagens de fim de semana, pra comprar roupas novas, dar presentes pra essa garota agregada. em uma dessas frases que rasgam a gente a abigail até diz que por derivação de sentido, uma vida feliz é sinônimo de um amaciante para roupas de qualidade.
então, ao mesmo tempo que a abigail enxerga a abigail indo pra cada vez mais longe e sente raiva disso, se sente solitária, se sente ficando com o pior de tudo – ela melhor do ninguém entende também os motivos da irmã. uma das declarações que a irmã faz pra outra é justamente essa: sai daqui, berta, e por favor não vá embora nunca mais.
em outro momento, a abigail vai comparar a felicidade com a possibilidade de gerar lixo. é o trecho que eu li no inicio desse episodio. ela queria acordar com a sala que não cheira a umidade nas paredes, mas com um cheiro azedo de lixo orgânico, porque esses excessos de cascas, comidas vencidas, embalagens sujas, significaria uma vida de fartura, de abundancia. e não de fome. mas ela só tem então a tristeza, de precisar pedir comida, ovos pras vizinhas.
essa questão da fome é o que liga ela e a irmã ao pai. o pai é descrito como um homem que pensa muito antes de falar e, quando fala, ele solta frases coesas, brilhantes, com rebuscamentos, os sons bem pensados, jogos de palavras. o uso novo de palavras antigas e o ensinamento de palavras que as meninas nunca ouviram. isso tudo gera admiração nas irmãs, esse zelo dele pela comunicação. ao mesmo tempo, ele é descrito como alguém relapso, pouco afeito à vida prática. são deles todas as caixas acumuladas, toda sua vida foi encaixotada e ele não consegue encarar tudo aquilo, mas também não pretende se livrar de nada. ele também esquece de comprar comida, deixa a geladeira vazia com alguma frequência e insiste com as garotas que A FOME EDUCA. ele tenta se preocupar, mas está sempre meio avoado justamente por se preocupar demais. e a abigail fica inconformada no meio disso, com raiva por sentir fome, mas também fascinada por aquela figura masculina, que querendo ou não se esforça para ensinar alguma coisa, nem que seja duvidar de tudo, saber rir de si, e ter o hábito de escovar os dentes.
no meio disso tudo, de toda essa sensação permanente de declínio e de desamparo, a abigail vai se mostrando também uma pessoa preocupada com o futuro, com a vida da irmã e do pai. ela vigia o pai enquanto dorme, com medo, tentando ter certeza se ele ainda está respirando. ela acompanha a vida da irmã de longe e vibra e dorme bem quando as duas fazem algum programa juntas.
os três vão juntos descobrindo o que significa essa palavra gelatinosa que é a palavra família, no sentido menos idealizado possível. o que acaba configurando os tais caquinhos então como um belíssimo romance de formação.
porque acompanha um bom tempo na vida da abigail, na adolescência dela, na vida escolar, nela tentando amadurecer com um pouco menos de suporte do que gostaria, vivendo num lugar desagradável… ela vai descobrir então o sexo, os homens, essas primeiras relações, amizades novas, a bebida, cigarro, maconha, drogas. ela vai se distanciando de si pra tentar escapar do mundo que ela tem acesso. não é a toa que a palavra apartamento é um sinônimo de solidão.
fica evidente na narração toda essa ambiguidade, esses sentimentos próprios da adolescência, como a confusão, a sensação de que ninguém te entende. e o próprio leitor se coloca numa ambiguidade também.
a Natércia pontes cola essa narrativa, palavra por palavra, de um jeito impressiona. ela rasga o leitor, expondo um sentimento triste ou um acontecimento violento, como o fim dramático de um relacionamento ou o desenvolvimento de sintomas de ansiedade, acho que posso dizer assim, mas tudo justaposto a cenas engraçadas e comentários absurdos, como os registros de um diário antigo, uma lista de sonhos, uma outra lista de ensinamentos que a abigail acumulou ao longo da vida. às vezes, basta uma palavra no final de uma frase pra gente ficar em duvida se é pra rir ou chorar.
a narração conquista, a gente se envolve, se apega a esses três personagens. e quando dá por si, tá com a cabeça toda desorganizada sem saber lidar com tudo que aconteceu. se eu não consigo me compreender, imagine explicar os livros que eu amo.