Pular para o conteúdo

a extinção das abelhas
natalia borges polesso

companhia das letras

leia a transcrição

regina sobreviveu à pandemia de coronavírus dos anos 2020 e agora lida com as consequências terríveis dessa doença e de outra série de decisões extremas tomadas por governos de todos os países. esse é um mundo em colapso, onde todos sofrem de alguma maneira.

a extinção das abelhas é um livro que natalia borges polesso, escritora premiada, tem escrito há alguns anos, mas foi lançado no momento certo para mim, porque me atingiu e soube traduzir um sentimento que todo brasileiro tem sentido, mas nem todos conseguem elaborar. é uma mistura de desânimo e medo. uma vida onde todas as decisões parecem pequenas e incertas, onde muita gente vive na paralisia provocada por certa exaustão, focados demais em sobreviver, a sensação de que se dar um descanso ou um lazer vai fazer tudo em volta ruir. no meio de tanta tragédia, parece inviável sentir qualquer coisa íntima que seja, como se para o mundo não fizesse a menor diferença se você estava satisfeito ou não.

as coisas simplesmente seguem, por leis que você não escolheu.

o mundo agora é praticamente regido por um enorme termometro que sumariza as ações de varios lugares do mundo: o consumo energético, a queima de combustíveis, a produção de lixo, a perda de espécies e biodiversidade… tudo influi nesse COLAPSÔMETRO, essa temperatura ficticia mundial cujos limites supostamente teriam que ser respeitados por todos. é uma medida de proteção e segurança planetária, mas somente algumas determinadas regiões e países é que realmente sofrem sanções e tem zonas fechadas.

uma das partes mais interessantes da caracterização desse mundo da natalia borges é justamente esse modo de deixar evidente como o fim do mundo acontece de forma diferente para cada pessoa, para cada grupo. em uma determinada cena, regina e duas amigas estão conversando sobre a inauguração do colapsometro e uma delas diz que o fim da alimentação como a gente conhece jamais acontecerá e que a prova disso é que elas estão tendo um jantar farto exatamente ali agora. A Denise e a Eugênia são daquelas pessoas que dizem que crise é um momento de exercitar a criatividade e, por isso, tem planejado os próximos passos de um negócio de beleza cosmética.

do lado de fora, porém, regina explica a elas, que já está faltando comida, principalmente por causa dos agrotóxicos e das políticas de grandes empresas. na mesa havia uma refeição farta, mas fora daquela sala de jantar, havia pessoas morrendo por falta do que comer, por falta de medicamentos, por falta de energia, por falta de água, por falta de coleta de lixo.

tudo no romance é baseado em leis, decretos, ações políticas que realmente foram aprovadas, ou acontecimentos e desastres que se deram na realidade também. o que a natalia borges faz é, na verdade, extrapolar os limites disso, exponenciar os efeitos, ou imaginar a repercussão disso que já tem acontecido há bastante tempo no futuro mais ou menos próximo. é talvez essa parte que mais me tocou no livro, todas as informações que são palpáveis e vão ser ainda mais factuais se todo mundo conitnuar com essa aparência cansada, discutindo o que está em jogo apenas por meio de like e textão.

nesse mundo de abelhas em processo de extinção, toda a cadeia alimentar foi alterada e agora uma grande empresa de pesticidas precisa usar um método artificial de polinização. o governo sempre fala que está tudo “sob controle”, que a função da tecnologia era “superar a natureza”, mas agora tudo chega nos mercados é feio, podre de veneno, irreproduzível, porque não tem sementes. este é um ambiente onde o cultivo com agrotóxicos se tornou quase sinônimo de agricultura. além disso, tudo está mais caro do que nunca. a fome atingindo níveis cada vez maiores.

a profecia continua quando a gente olha essa paisagem onde a falta de policiamento e justiça também atinge a todos de uma forma desigual. um grande número de condomínios fechados e bairros ainda mais segregados vai surgindo quando o estado e as instituições entram em total deterioração e surgem novos movimentos armados, mílicias e formas de segurança alternativa.

o movimento das ruas é sinal de perigo, principalmente para quem já era discriminado antes, como a população lésbica e trans, a população preta, a população de imigrantes. sem proteção, jogos e desafios começam a ser popularizados nas redes sociais com a intenção de exterminar quem vive fora de certa norma ou padrão. são pessoas que agora precisam andar sempre identificadas e são proibidas de circular por alguns espaços.

esse universo também lida com uma série de reformas na educação que fizeram com que muitos cursos desaixassem de existir, principalmente aqueles que não envolvem construir pontes, fazer prédios ou vender serviços, com a justificativa de serem irrelevantes e não gerarem nenhum retorno social direto.

diante de tanta incerteza, também aumentam os índices de desemprego. o trabalho é escasso, o que faz com que regina procure uma solução pouco ortodoxa para fechar as contas no fim do mês: começa a trabalhar como camgirl, faz shows onde se exibe com uma webcam ao vivo para estranhos do mundo inteiro. é a forma que ela encontra não só de se alimentar mas tambem para continuar com as aplicações de insulina que ela depende para viver.

nessas apresentações, ela se transforma numa mulher gorila, uma outra persona. usa uma máscara para conseguir colocar para fora toda a selvageria que o momento exige dela.

regina viu todas as pessoas indo embora da sua vida e não fez nada. a mãe foi embora com o circo, seu pai morreu por causa do alcoolismo, as pessoas que cuidaram dela desde a infancia foram viver um pouco distantes, preocupadas demais com as próprias coisas e os próprios negócios. sua melhor amiga irmã foi embora pra outro país, tentando escapar dos próprios dramas. até mesmo a gata de regina foi embora, deixando ela sozinha e perdida.

aos vinte e quatro, regina achava que ser adulta era se virar sozinha, mas agora aos quarenta, que ela entende que ser adulta tem a ver com saber cuidar das pessoas, ela se sente distante de tudo, desconectada dos outros.

o governo tem acabado pouco a pouco com seu mundo desde 2018 ou até antes, mas ela pouco ou nada fez em relação a isso. viver tem sido um trauma diário, uma perda nova a cada momento, um rompimento constante em relação a tudo que ela conhecia como vida até então. ela sempre escuta as pessoas falarem de seu corpo grande, cheio, alto – dizem que ela deve parar de fumar, parar de beber, maneirar na alimentação, e mesmo que ela não acate, ela não revida.

ela sentia vontade de ajudar outras pessoas que precisam, as pessoas do seu bairro, as pessoas em situação de rua, aqueles que estão numa miséria maior, mas simplesmente está paralisada diante de tanta notícia ruim.

não vou revelar muito sobre o enredo, mas posso dizer que uma das partes mais interessantes da história vem de regina vestida de mulher gorila, conseguindo tomar as rédeas da situação, tomar controle sobre o próprio corpo. o ápice da narrativa é esse devir mulher bicho, esse ser que se impõe e abre revanches contra todos os homens.

em paralelo a isso, a gente conhece a mãe de regina, lupe, que trabalhava como monga, a mulher gorila, em espetáculos. esse instinto para a liberdade também fez essa outra mulher se vestir como animal para deixar a filha criança e o marido para trás e viajar por outras cidades e países junto a amigos, amigas, amantes. os capítulos de lupe apresentam uma comunidade de artistas e pessoas que estão em deslocamento no mundo justamente porque estão deslocadas de todo o sistema que gerou esse desastre ecológico, distantes das ideias correntes do que significa família, sucesso, amor, trabalho. havia nela uma vontade genuína de compartilhar aquela felicidade com as pessoas que tinha deixado pra trás, mas o marido e a filha não cabiam naquele espaço, não compreenderiam esse plano de fuga.

ela estava apenas sendo quem queria ser e não sentia que precisava pedir perdão por isso. era instintivo e justamente por isso essa personagem sirva tanto para o leitor exercitar um olhar com mais entendimento para as outras pessoas – assim como todas as outras mulheres da história. mulheres perdidas, equivocadas, desatentas, descreditadas, que não haviam diretamente feito uma arminha com a mão nas eleição, mas que passam a atirar pelas costas uma das outras em um determinado momento, mesmo que as intenções sejam boas. é esse o ponto, talvez. nesse fim do mundo, pouca gente está mal intencionada de verdade. talvez mal informada, talvez mal instruída. mas com certeza fazendo o que consegue com as poucas ferramentas que não sucumbiram tambem.

essa figura da selvageria condiz bastante com a existencia tanto da mãe quanto da filha, indomaveis em suas formas de lidar com a catastrofe do dia a dia. as duas narrativas vão se espelhando e se complementando. a vida de regina passa por transformações, mudanças e separações – muitos fracassos, muitos arrependimentos, dores, muita solidao – , enquanto a vida de lupe é remapeada constantemente pelas viagens com sua trupe de espetáculos por lugares precários, marcando essa arte mais como uma forma de sustento que libertação de fato. nenhuma das duas volta atrás, suas decisões parecem sempre irreversíveis. e ao mesmo tempo, o mundo vai se deteriorando tanto quanto essa relação permeada pelo silencio, pelas cartas nao respondidas, pelo dialogo que nunca acontece.

esse é outro ponto interessante aqui. esse não é um livro de apocalipse, de fim do mundo, onde as personagens tem um objetivo evidente, um lugar aonde chegar para pedir socorro, uma estrada cujo fim guarda a salvação, um inimigo a ser derrotado… nesse caos, ninguém sabe direito como agir, pra onde ir, com quem contar. cada um tem sua própria visão de como ser salvo – ou então está desesperado demais ou solitário demais para agir racionalmente.

apesar de muitas cenas estarem dotadas de um certo pessimismo, o desfecho do livro acaba não sendo exatamente fatalista. o fim do mundo tá acontecendo faz tempo, mas o inicio de coisas novas também. as coisas não são totalmente felizes quando o livro acaba, mas existe algo que nos incentiva a ir pra frente cada vez mais, a imaginar outros caminhos para regina e todas as mulheres que a acompanham nessa jornada por um mundo novo, por uma conciliação que ainda precisa ser forjada. talvez tudo caminhe para uma vida na ausencia da razao. mas as vezes é justamente o que precisamos: abandonar essa razão científica que trouxe a gente até aqui. para que mais gente se torne louca, fera, monstra, selvagem.