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ㅤㅤ sete pecados
daㅤelite

“AS SOBRAS DE ONTEM”, ROMANCE DE ESTREIA DE MARCELO VICINTIN, EXPÕE COM HUMOR E ELEGÂNCIA INCONGRUÊNCIAS DA ELITE BRASILEIRA QUE SOBREVIVEM A GERAÇÕES.

Inveja
Maria Luiza Alvorada percebeu bem cedo o que desejava na vida — culpa da dona Odette, que a ensinou ainda jovem o prazer de olhar gente bonita. Quando completou quinze anos, seu presente foi uma viagem com a avó para Paris. Lá, foi educada em saguões de hotéis e seus grandes restaurantes. Aprendeu a reconhecer objetos de luxo, bolsas, jóias, pessoas. De longe, observavam senhoras com seus modos elegantes, casais abobados vestidos juntos no estilo francês, mulheres com o nariz empinado por cirurgiões plásticos. Imaginavam os hábitos de cada pessoa com base nos acessórios que usava, no jeito de andar, na coloração dos cabelos. 

Mais tarde, ela adaptaria esses gostos — nada rococó, nada estranho, nada velho; reconhecia-se num estilo mais moderno, mais clean — contudo, não os preços que eles custam. E o problema era justamente esse: Marilu não nasceu abastada. Seus pais sofriam para pagar colégios caros, tentando se passar por uma família rica e, em dado momento, mesmo falindo sustenta a farsa. Mentia sobre suas férias para os colegas na escola e, na juventude, só conseguiu comprar roupas novas todos os meses quando copiou o número do cartão de crédito de uma amiga esbanjadora. 

Para se sentir incluída nos grupinhos que frequentava, era necessário estar sempre aplicando golpes e contando mentiras. E, sempre que descoberta, Marilu se afundava num sentimento de isolamento ainda maior do que o de antes, quando sabia que não pertencia àquele lugar mas não tinha tentado fazer parte.

A beleza das coisas em volta de mim ajudava a ressaltar a minha beleza e, quanto mais bonita me sentia, mais feliz eu ficava.

as sobras de ontem
marcelo vicintin

companhia das letras
216 páginas

Preguiça
Herdeiro de uma empresa do ramo naval, Egydio Poente nunca precisou provar nada pra ninguém. Seu cargo de diretoria foi encomendado pelo pai, que seguiu uma linha de administradores frios e precavidos, permanentemente investindo em negócios seguros. Egydio, entretanto, tem estima por correr riscos: se o preço da abundância é a saciedade, o preço da saciedade é o tédio. Levou a empresa familiar a ganhos altíssimos, aumentando os lucros e dobrando metas… até que foi flagrado por uma operação da polícia federal.

Seu grande apartamento de superfícies brancas foi reduzido a prisão domiciliar. O dia-a-dia preguiçoso, repetitivo, estático, previsível, quase confunde os momentos em que ele deve escovar os dentes com os que ele deve começar a beber uma garrafa de whisky, não fosse por uma parte importante da personalidade de Egydio: o protagonista de As Sobras de Ontem está perfeitamente ciente de que se apresentar com aprumo e estar bem-vestido em qualquer situação para um mundo que agora o despreza é fundamental para continuar representando o poder que seu sobrenome carrega. Pode-se perder o respeito, ainda assim, perder o status é algo diferente.

Eu lembro de tudo e sou assombrado por tudo. Talvez não tenha sido uma ideia tão boa assim a prisão domiciliar. Tremembé não tinha todos esses fantasmas.

Gula
É com isso na cabeça que Egydio resolve organizar um grande banquete para quarenta convidados. A legislação o proíbe disso, visto que apenas pessoas selecionadas podem frequentar sua casa agora que ela é um cárcere, o que é apenas um detalhe para quem já foi corrompido. Irá replicar, na sua ilha prisional, o último baile do Império brasileiro.

Organizar uma celebração com amigos antigos em memória dos bons tempos — ou o que sobrou deles — é mais do que uma tentativa de romper com o perigoso convite à loucura que é estar sozinho e isolado, é uma tentativa de se incluir novamente nos rituais da classe alta. Agora que não tem mais nenhuma grande decisão a tomar, Egydio pode pensar com calma nos detalhes dessa noite. Tão importante quanto pensar em quem estará na seleta lista é pensar em quem será deixado de fora. É preciso escolher com apuro o papel dos convites, os tecidos decorativos, os lugares marcados, a prataria do serviço.

Grande parte do enredo do livro de estreia de Marcelo Vicintin acontece em torno da organização desse evento de gala, que representa com contundência a alienação e o egoísmo de quem está no topo da pirâmide social. Entre as escolhas do cardápio e a contratação dos fornecedores, Egydio revisita tudo aquilo que o trouxe até aqui: sua trajetória profissional, as relações com familiares, as namoradas que teve, seus modos de estar no mundo. Com um tom irônico, o autor dispara críticas à moralidade da elite brasileira com a voz ressentida do personagem abandonado e delatado pelos colegas, vítima de uma situação que muita gente esquece: a tentação de crescer nunca pode ir além do que as estruturas suportam — habitualmente há alguma crise quando há obsessão pelo exagero.

Ira e Luxúria
A outra narradora criada por Vicintin também carrega certa comicidade no texto, escrito em fragmentos de diários, com gírias e espontaneidade. Todavia, suas histórias chegam a um lugar de tragédia que não alcança Egydio, como se nascer rico ou pobre fizesse diferença nos valores e nas sujeições possíveis diante dos outros. O orgulho de Marilu pode parecer grande, porém, é bem menor que a sua carência. O que começa como um deslumbramento infantil por uma bolsa de marca se transforma em noitadas com drogas, bebidas e volúpias, tudo bancado pelo namorado que coleciona carros de luxo. Tão rico quanto destemperado, a relação dos dois escala em níveis de ciúme e coloca em xeque a integridade de todos que conviveram com o casal. 

Vicintin controla muito bem as reviravoltas, apontando desde o primeiro capítulo peças fundamentais para compreender o desfecho, mas sem exibir demais tudo que irá fazer diferença lá na frente. A escrita madura e a trama sofisticada de Vicintin fazem com que a oposição entre os dois personagens vá além do óbvio contraste entre os sobrenomes: Alvorada e Poente, uma personagem em ascensão e outra em decadência.

As citações eloquentes e toda a sabedoria acumulada por Egydio, pronto a disparar curiosidades e filosofias sobre matemática, moralidade e justiça, ajudam a interpretar questões estéticas e éticas dos diários de Marilu. Da mesma maneira, as fúteis regras de etiqueta, os guias de conversas supérfluas e as vitrines de figuras exóticas da noite paulistana que Marilu apresenta retiram as máscaras das pessoas que conviveram em algum momento de suas vidas com Egydio. Um livro sobre vaidade enredado num jogo de espelhos.

Dizem que o dinheiro não muda ninguém, apenas desmascara; e é num mundo sem máscaras que as predileções humanas ficam mais claras.

Vaidade
Outra das discussões interessantes que Vicintin propõe diz respeito ao relacionamento entre a elite econômica e a classe política. Cada político é apenas um porta-voz da opinião daqueles que o colocaram lá — seja os grandes ricos, a pequena burguesia, o funcionalismo público ou qualquer outro grupo de pessoas cuja opinião importa para aquele tema. Criamos a ilusão de que um político é alguém poderoso, no entanto, ele nunca tem vontade própria ou uma visão única do mundo. Acreditamos na mudança por apenas um breve momento, mas depois concluímos que estamos numa batalha perdida. Só seria mesmo poder se permitisse ao portador mudar algo de relevante e isso jamais acontece. 

O que esse jogo faz, no fim, é apenas produzir figuras que se tornam símbolos de luta e vitória e se envaidecem por isso. Em outras palavras: manter ilusões. O dinheiro que financia a boa vida de Egydio não foi ganho pelo seu pai e, nem, aliás, pelo seu avô — por muitas gerações já, o papel de seus predecessores foi o de reinvestir um patrimônio largamente herdado. A ascensão social de Marilu poderia muito bem ser utilizada como token de alguém que chegou lá, mesmo que o caminho não instagramado esteja repleto de pequenas corrupções. 

Um sorriso falso para apagar outro sorriso falso. O público em geral gosta de observar esses símbolos, sentem prazer em ver gente bonita ou que parece poderosa. Inclusive quem critica. Principalmente quem critica.

Não há nada pior do que ver regras sendo quebradas para outros e não para você.
Na verdade, há, sim: ver regras sendo quebradas para outros que não têm sequer a cortesia do bom gosto.

Avareza
As Sobras de Ontem explora muito bem essa classe cujo prazer vai além do ver e passa também pelo ser visto. Gente que sabe construir imagens de desejo, se enclausura nos rótulos caros e constrói trajetórias com beleza simétrica. Os personagens aqui sabem gerar assunto e tentam espantar o tédio acumulando o máximo de objetos, eventos, acontecimentos possíveis, mesmo que tudo seja esvaziado de sentido logo em seguida, mesmo que tudo seja superficial ou efêmero — já dizia o mergulhador: profundidade demais estoura os tímpanos. 

Dinheiro e beleza duram pouco, mas enquanto duram, ah, é bom pra cacete e servem pra alguma coisa. As relações de Egydio e Marilu expressam muito bem que, em algum nível, todos queremos conservar nossos lugares numa pirâmide social. Em algum nível, carregamos privilégios que não queremos largar, chamando isso de “bom funcionamento da sociedade” ou “ordem para o progresso” ou “Deus acima de todos”.

Por outro lado, também estamos interminavelmente sentindo uma vontade sem precedentes de ter mais daquilo que já se tem. E, então, um aponta o dedo para o outro, acusa alguém para tomar seu lugar, assalta o corrupto. Mas quem roubou primeiro? Tão longe quanto podemos ver, nossa história é feita de trapaças e apunhaladas pelas costas. Talvez essa seja a regra geral do nosso sistema e as tentativas de controlá-la sejam fugazes.

Alinhando uma escrita de referências refinadas à agilidade tensa dos livros populares, fica claro que esse livro de estreia tem o poder de se comunicar com pessoas e grupos distintos, todos podendo fazer paralelos com suas próprias hipocrisias e fascínios. Entre noções sobre o mundo empresarial, relações entre moda e luxo e a importância de uma nota ainda que pequena numa coluna social, As Sobras de Ontem manifesta, com humor e elegância, incongruências da elite brasileira que sobrevivem a gerações. A monarquia às vezes acaba, mas a realeza ainda persiste por muito tempo.

andre aguiar
é jornalista e pesquisador.