32 CARTAS NA MESA DE
MORGANA KRETZMANN
água turva
companhia das letras
272 páginas
Lenio Carneiro Jr.: Esse é o Cartas na Mesa, um espaço do Leituras para ouvir quem escreve a literatura brasileira contemporânea. Uma conversa em função do tempo sobre escrita, processos de criação e aquilo que ronda o que chamamos de literário.
A Morgana Kretzmann publicou Água Turva recentemente, pela Companhia das Letras, e também Ao pó, pela editora Patuá.
Morgana Kretzmann: Então, meu nome, como o Lenio falou, é Morgana Kretzmann, sou escritora e roteirista. Eu trabalhei como atriz de teatro por 14 anos. Ao pó é meu primeiro livro, ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura no ano de 2021. O meu livro atual saiu agora pela Companhia das Letras, chamado Água Turva. É um livro que trata de política, trata de questões sociais, trata de questões ambientais. Ele tem uma linguagem de thriller, por isso as pessoas todas estão chamando Água Turva de thriller ecológico, inclusive aqui.
Lenio Carneiro Jr.: Bom adjetivo, né?
Morgana Kretzmann: É! Eu acho que ele é um pouco mais do que um thriller ecológico, mas eu gosto quando eles pegam nesse lugar também.
LJ: Eu não sei se você está agora onde você costuma escrever, se não estiver, vai ter que exercitar a memória, mas a ideia é que você descreva como é a sua mesa de trabalho, de ofício, de escrita.
MK: Em cima da mesa eu tenho muitos livros. Tenho muitas canetas, muito post it. Eu tenho uma caveirinha que eu trouxe do México. Tenho um porta retrato com a minha sobrinha amada, Ana Claudia, que também sou dinda. Meu computador, que fica naquelas coisinhas de ficar alto. Comprei a pouco tempo, um ano e pouco, essa cadeira de gamer que tem salvado a minha cervical porque até então eu comprava uma cadeira atrás da outra. E cervical de roteirista… a gente fica muitas horas no computador ou em salas de roteiro pelo zoom. Tem o meu Exu bem aqui na minha frente. Tenho minhas espadas de São Jorge. Logo atrás, tenho todos os outros orixás. E junto com eles também tenho um grande altar com livros escritos por mulheres que me inspiram e que eu amo.
escritora andréa del fuego
LJ: Você gosta de jogo de baralho, se tem algum que você gosta mais ou se é uma área que você não gosta, e quando alguém te chama para jogar uma canastra, você foge da mesa? Como é?
MK: Quando eu era criança tinha uma coisa de jogar baralho. Jogar pife e jogar canastra. Perdi totalmente isso. Muito de vez em quando, na praia, com a família do Paulo, com o pai e irmão dele, a gente joga alguma coisa. Mas eu não sou muito do carteado não.
LJ: Bom, hoje vai ter que ser um pouquinho.
MK: Mas é um bom carteado, um carteado literário. Deixa eu contar. A Andréa Del Fuego voltou da Argentina com um carteado de escritoras latino americanas.
LJ: Com as figuras do baralho?
MK: Com as figuras e frases de cada escritora. E aí um baralho normal, atrás. Não sei muito bem como se joga, não sei muito bem o que que é. É um pouco de um baralho também meio cigano, para ler o futuro, também tinha isso. Esse tipo de baralho eu gosto.
LJ: Eu tenho um baralho de 52 perguntas sobre escrita, processos de criação e tudo mais. E a dinâmica do Cartas na Mesa é bem simples: a Morgana tem que tentar responder a maior quantidade de perguntas que ela conseguir no tempo de 18 minutos. As perguntas são as mesmas para todos os convidados, mas eu sempre embaralhos elas, então a Morgana não sabe a ordem das perguntas. E ela também tem direito a dois coringas. Se por acaso chegar uma pergunta que ela ou acha que vai demorar muito ou não esteja confortável para responder, ela tem dois coringas para usar e pular a pergunta.
enquanto agonizo
william faulkner
Você já foi contestada por algo que escreveu?
Não.
Qual o sentido humano mais importante?
Paladar. É, paladar. Porque seria muito horrível se eu não pudesse sentir o gosto das coisas que eu gosto de comer.
Seus pais são leitores?
Meu pai é um super leitor. Eu via muito ele lendo desde pequena. E a minha mãe, não muito. Eles são do interior do Rio Grande do Sul, vivem numa zona rural. É uma outra vida. Mas meu pai é um super leitor.
Como é sua relação com as redes sociais?
Escrava do Zuckerberg, né. Eu me vejo trabalhando de graça pra esse homem. Porém, tudo o que eu faço pelo livro eu não reclamo, porque é por ele, é pelo Água Turva. É uma coisa incessante. Eu trabalho todos os dias em rede social. Às vezes, algumas horas no dia em função de rede social. Eu sei que é o momento, porque eu acabo de lançar um livro, tenho que passar por isso, mas eu estou já há algumas boas semanas em função de rede social por causa do Água Turva.
Por que você escreve?
Por que eu escrevo? Eu escrevo porque eu acho que tem uma coisa muito sensacional nisso de criar mundos, criar personagens, criar geografia de lugares, criar histórias, tramas, e de repente você se torna uma arquiteta daquilo tudo, porque você tem que juntar todas aquelas situações e histórias e clímax e tudo, e fazer disso um romance – que no caso é o que eu escrevo. Eu acho que é porque escrever deve ser a droga mais pesada que existe.
O que você faz quando sente dor de cabeça?
Torsilax. Maravilhoso, funciona.
Acordar mais cedo para escrever ou escrever à noite e postergar o sono?
Acordar cedo, sempre. Acordar cedo. Melhor horário, inclusive, é de manhã para escrever.
O que você vê da sua janela?
Cimento. E tento ver poesia, também, nesse cimento todo, nessa cidade que teima em achar progresso é verticalizar. Eu tento ver poesia nisso também, nesse cimento.
[O que te incomoda no mercado literário brasileiro?]
Você costuma xingar ou dizer palavrões?
Olha, eu sou mulher nascida no Brasil. Um país que amo, quero deixar muito claro, amo meu país, porém ainda é um país cheio de gente machista, sexista, homofóbica, racista. Não tem como não soltar palavrão. É um número necessário semanalmente.
A palavra amplia ou condensa o mundo?
Tinha pensado nisso. Vou até mudar de ideia. A palavra, eu acho que ela condensa. Acho que o mundo é grande, as coisas são enormes e são longes. Eu mesmo escrevo sobre um lugar tão longe, que é onde tá minha família, lá na fronteira com a Argentina. Então eu acho que a palavra traz tudo isso mais para perto.
Quando você começou a levar a escrita a sério?
Desde sempre, desde criança. Desde que eu não escrevia mas escrevia, porque eu contava histórias, e ficava imaginando histórias, porque eu não sabia ler, então ficava imaginando as histórias olhando os livros. Acho que eu levo a sério desde sempre.
Qual conselho você daria para quem está distante da literatura?
Vários conselhos, mas tem um que eu já falei em um outro podcast que eu acho que é importante, que é: larga o seu celular. Larga o seu celular, pega um livro e veja a mágica acontecendo. A mágica acontecendo! Inclusive, a sua ansiedade vai melhorar. Se tem uma coisa que ninguém nunca vai poder tirar de ti é essa coisa de você entrar e começar a ler uma puta história, e terminar de ler uma puta história, essa sensação que dá dentro dos órgão da gente ninguém te tira. Então larga o celular, pega um livro, veja a mágica acontecendo.
Álcool, entorpecentes, cafeína ou farmacológicos?
Cafeína e espumante. Na ordem assim: se eu tô num restaurante, é espumante e depois café.
O quão política é a literatura?
Olha, ainda mais nós que escrevemos aqui no Brasil, não existe criar um personagem que não seja político nesse país. Os personagens já são políticos. Os personagens reais e os personagens fictícios, eles já são políticos. Os meus livros, as pessoas teriam que ler para entender o quanto a política é importante para mim e o quanto ela tá nos livros. Mas eu acho que é isso. As nossas personagens todas já são políticas.
Qual livro você gostaria de ter escrito?
Falarei o que eu falo sempre. Enquanto Agonizo, de Faulkner. Eu queria ter escrito esse livro, eu volto pra esse livro, eu releio esse livro. Quando eu tô travada, com problema de criatividade, voltar a escrever, é o Faulkner. É o Enquanto Agonizo.
guarda do embaú,
paulo lopes – sc
Quais aplicativos, programas ou softwares te ajudam a escrever?
Nenhum. Sou analógica. O que me ajuda a escrever são os livros, os livros que eu leio ou que me inspiram. Como acabei de falar, os livros que eu volto. Então, não. Eu acho que se eu precisasse de algum aplicativo (eu não estou aqui falando mal de quem faz isso!), eu me sentiria muito fracassada se eu precisasse de algum aplicativo pra escrever.
A vida é curta?
Olha, depois dos quarenta a vida é rápida.
Qual o papel da música (ou do silêncio) no seu processo de criação?
Eu moro em São Paulo, então aqui tem muito barulho. Eu gosto muito de silêncio para escrever. É meio impossível não precisar de vez em quando colocar um um Bach para tocar aqui nos meus fones e aí por cima dos fones eu boto aquele abafador de ruído. Eu tenho fotos no meu Instagram deste momento. Eu escrevi muuuitos capítulos do Água Turva com aquele abafador, tocando Bach.
O que não cabe à literatura?
Acho que não cabe regras. A literatura é um lugar democrático, é um lugar que tudo pode porque a arte tudo pode. Eu que venho do teatro, no teatro não tem nada de errado. A gente sempre aprende isso, uma das primeiras coisas que você aprende no teatro é que você não erra no teatro, não tem errado no teatro. E isso eu levo para a literatura: como arte não tem regras porque não há erros.
Como seria um dia perfeito?
É uma pergunta bem difícil, porque o dia perfeito a gente só percebe que ele é perfeito, para começar, quando ele acaba. A gente não percebe isso. Acho uma pergunta muito difícil, não vou pedir coringa. Eu vou com ela porque acho que vão ter perguntas mais cabeludas, então vou usar meu último coringa depois. Mas eu acho que tem muito a ver com o momento da vida da gente e com aquilo que a gente tá vivendo. Vou dar um exemplo. O Paulo sempre fala isso pra mim: “você fala que aquele foi um dia perfeito”. Que é um dia qu eu estava na Guarda do Embau, verão, férias. Eu estava no mar azul, calmo, tranquilo, e eu passei horas boiando. Horas! Boiando! Naquele lugar. E eu saí de lá falando: foi um dia perfeito, esse foi um dia perfeito. E eu lembro da sensação desse dia perfeito. Porém, no outro dia, me deu uma ensolação, me deu ferida na boca por causa da ensolação. Tem essas consequências, né? Então depende muito do momento de vida. Mas esse foi realmente um dia perfeito.
Flâneur, do substantivo francês flâneur, significa “errante”, “vadio”, “caminhante” ou “observador”. Flânerie é o ato de passear.
[Toda arte aspira constantemente à condição de música?]
Como é sua relação com as editoras que te publicaram?
São muito boas. A Patuá é uma editora independente. Foi um acolhimento. Eu estava me mudando para São Paulo quando eu conheci o Eduardo Lacerda, uma pessoa incrível. Sempre tive uma relação muito boa. E hoje eu tô em outra editora, que é a Companhia das Letras, inclusive muito apoiada pelo Eduardo para entrar para uma editora maior, porque a Patuá é uma editora pequena, independente, sem ter uma grande distribuição como a Companhia tem. E na Companhia eu fui muito bem recebida e hoje o meu tratamento em relação ao livro, à divulgação, ao trabalho do livro, eu não tenho absolutamente um “A” para falar a não ser coisas boas. Eu fui muito respeitada, muito bem tratada. Eu sei que deve ter gente que fala das suas editoras e seus editores, mas até hoje eu não tenho nada de ruim para falar. A minha editora, Stéphanie Roque, é uma pessoa incrível. Me sinto abençoada, mesmo.
Caminhar a pé, andar de trem ou voar de avião?
Ser flâneur na vida. Caminhar, porque o caminhar é uma coisa tão maravilhosa para mim e para meu marido. A gente caminha muito. E a gente tem isso de caminhar desde que a gente foi morar juntos, quando a gente morou no Rio de Janeiro, há muitos anos atrás. A gente está junto vai fazer 13 anos agora. Então o caminhar, se você está estressado, ele ajuda. Se você está para entrar em uma crise de ansiedade, ele ajuda. Se você está feliz e quer comemorar, é caminhando. Essa coisa de caminhar… Realmente, eu sou muito dessa teoria de ser flâneur na vida.
escritor paulo scott
Você tem medo da morte?
Olha, Lenio, não tenho. Sabe do que eu tenho medo? Da morte das pessoas que eu amo. Da morte das pessoas que me mantém nesse mundo. Das pessoas que fazem eu querer estar nesse mundo. Eu tenho medo da morte delas.
Você escreve, ou tenta, escrever todos os dias?
Eu fracasso muito tentando fazer isso. Eu sou assim: eu venço francassando. Eu tento todos os dias, mas é… não rola.
Quais gatilhos te incitam a começar um novo projeto literário?
Então, é muito louco. Não é tão louco porque tem pessoas que falam mais ou menos isso também. São as tragédias. Porque assim, o Ao pó fala do quê? Abuso infantil: tragédia. Água turva: tragédia ambiental e tragédia familiar — de uma família inteira. Próximo livro, A Safra, aí é tragédia mesmo, porque é baseado numa Antígona, só que uma Antígona minha, brasileira, rural. E fala de escalpelamento e de criança que morre por escalpelamento. Eu fiquei pensando nisso. Realmente, o que me move a escrever os meus livros, minhas histórias, os meus contos também, são tragédias.
Qual sua pessoa favorita?
Paulo Scott. Meu marido. A minha pessoa mais favorita do mundo.
Se surgisse o convite para você escrever a biografia de algum ídolo, com direito a todos os bastidores da vida dele ou dela, quem seria?
Lenio… eu fiquei na fila… no sol escaldante do meio dia durante três horas para comprar os ingressos de Maria Bethania e Caetano Veloso. Então sem sombra de dúvidas. A Maria Bethania para mim é uma entidade.
Qual sonho você já teve, e hoje não tem mais?
Eu tive tantos sonhos que não tenho mais. Tantos. Ah, tive sonho de ser atriz de novela e não rolou. E hoje não quero, nem por todo dinheiro do mundo. Me bota pra escrever uma novela, eu vou. Ser atriz, não.
Qual sua fé?
Eu sou de candomblé. Eu tenho fé também em outras coisas, como na literatura por exemplo, mas sou de candomblé. Eu tenho muita fé em Exu, como eu te disse. Eu tenho Exu aqui na minha frente. Não sou filha de Exu, sou protegida de Exu. Tenho fé em Iemanjá, que é minha mãe. Tenho fé em Ogum, Oxóssi, Oxum. E tenho fé no Sarampião. Que é um personagem que eu criei pro Água Turva. É um personagem mítico, eu crio esse personagem e ele vira uma espécie de Santo no livro. Tem uma reza para Sarampião. A Companhia das Letras mandou fazer santinhos! Lindos! Com a reza de Sarampião, com uma brincadeira embaixo falando “faça seu pedido” e tudo. Nos lançamentos, eu dou o santinho pros leitores. Então assim, eu tenho fé em Sarampião como santo curandeiro do Água Turva e essa fé vem porque eu tenho fé na literatura também.
Literatura salva?
Olha, é uma pergunta complexa. Eu acho que ela salva algumas pessoas – muitas pessoas. Mas algumas pessoas, não. Por quê? Vou te explicar. Porque às vezes a gente acha que a literatura tem uma importância, ou deveria ter uma importância para todo mundo, e por “N” motivos que eu não vou ficar citando aqui tem pessoas que não conseguem ler, não sabem ler, não podem ler, não tem acesso à leitura. É uma frase um pouco classista, isso da gente falar que a literatura salva, como se isso fosse uma salvação para todas, quando ela não é acessível para todos. Quando entra nessa coisa classista, eu não gosto. Então eu acho que ela salva algumas pessoas, para algumas pessoas. Só que a gente tem que pensar que ela não é acessível para todos. Então não é tão fácil usar essa frase, que é uma frase que em muitos lugares ela é classista.
o coração do dano
maría negroni
a vergonha
annie ernaux
LJ: Bom, com essa a gente chega nos 18 minutos.
MK: Quantas eu fiz?
LJ: Fez 32.
MK: Eu queria fazer de novo, para tentar… Tô brincando. Sou muito competitiva, se eu souber que alguém fez 34 eu vou falar “meu, por que que eu não falei mais rápido aquela hora?”
LJ: Para finalizar, Morgana, muito obrigado pelo espaço, pela conversa e por tudo que você falou. E pedir uma indicação de uma das suas últimas leituras que você leu, gostou muito e recomenda.
MK: Olha, acabei de ler a Maria Negroni, O Coração do Dano, uma argentina. O livro tá todo marcado. Livro incrível, livro maravilho. Então fica aqui a dica. E eu tô lendo pro meu próximo livro a Annie Ernaux, A vergonha, porque há toda uma pesquisa pro meu próximo livro. São essas duas mulheres maravilhosas, recomendo muito.