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além
dos ㅤㅤ cadernos de
campo

da antropologia à literatura, a pesquisadora francesa nastassja martin causa rompimento em “escute as feras” após sobreviver ao ataque de um urso.

A faca de cortar cebola dilacerando o queixo.
A navalha da gilete rasgando a pele junto à barba.
Um caco de vidro irrompendo toda a lateral do rosto.
Antes dos objetos cortantes, garras e dentes.
Antes do maxilar-pré-harmonização-facial, pedaço de carne.

ㅤㅤㅤme pergunto:
ㅤㅤㅤo quão dolorido é
ㅤㅤㅤa mordida de um urso
ㅤㅤㅤa saliva invadindo o organismo
ㅤㅤㅤo beijo-luta-selamento entre duas almas
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤque se rompem
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤque se unem

Urso: selvagem, predador, grande, forte, enorme, maior, místico — outro.

Até que ponto o contato de quase morte com um urso nas florestas geladas do norte russo abala o entendimento sobre alteridade de uma antropóloga que não apenas sobrevive ao encontro, como se desconfigura física e psicologicamente?

um urso e uma mulher são algo grande demais como acontecimento


escute as feras
nastassja martin
tradução de camila vargas boldrini e daniel lühmann

editora 34
112 páginas

Em Escute as Feras, tudo é híbrido. Para entender o que Nastassja Martin alcança, é fundamental a superação de uma concepção dualista. Contra o esforço constante que fazemos em explicar as coisas/conceitos/símbolos a partir de uma oposição, o livro é uma autoficção que vai além da ruptura entre realidade e ficção; personagem e escritora. Para entender de onde parte e onde pode chegar, outros jogos de oposição precisam cair. Vivência e ciência, o primeiro deles.

Se afirmo sou humano, digo sou diferente dos animais. Toda identidade perpassa por uma noção de diferença, em que ser como se é depende do não-ser outra coisa. O que acontece quando a linguagem é insuficiente em traduzir o intraduzível? A partir do momento em que Nástia sobrevive à troca de olhares com um urso; ao encontro dos corpos físicos de dois mamíferos tão diferentes quanto iguais, se corporifica um não-lugar no que restou de Nástia. Se no português não há como unificar este sentido, a palavra do idioma even miêdka consegue: designa os que sobreviveram ao encontro com um urso, em que a pessoa se torna, dali em diante, tanto urso quanto humano. Mulher-urso, urso-mulher. O que resulta dessa experiência constrói o livro.

Eis nossa situação atual, a do urso e a minha. Nós nos tornamos um foco de atenção sobre o qual todo mundo fala, mas ninguém capta.


A noção de hibridismo existencial tangencia toda a narrativa. É essa metamorfose sem pretensão de solidez que dá potência para o fato do corpo de Nástia se tornar um território onde cirurgiãs ocidentais dialogam com a medicina soviética e os ursos siberianos. Por anos acreditei na possível superação de conflitos, justamente por crer na nossa capacidade de resolução. Pensava comigo que embora a neutralidade fosse impossível, era sim possível a conciliação pacífica a partir de uma comunicação eficaz. Hoje, vejo diferente. Os conflitos nos moldam. Disputamos vagas no estacionamento em frente à farmácia, disputamos vozes na consciência para tentar seguir a mais razoável. Narrativas, ficcionais ou não, são discursos que se sustentam nesses conflitos. Escute as feras é um discurso complexo e desconstrutivo cuja força está nos limiares do encontro entre o que é antropológico e o que é literário.


conversa entre nastassja martin e ailton krenak promovida pelo ciclo de estudos selvagem

Se a literatura é pulsional, a antropologia é um dos mais corajosos campos do saber. Fora do debate epistêmico e metodológico que não me interessa, o esforço em mergulhar fora de si para entender e definir o Outro antecede o que hoje o vocabulário contemporâneo digitalizado busca com o termo empatia. Aceitar o outro com toda sua diferença, sua inacessibilidade, sua posição fora de alcance é complicado, porém acredito ser mais difícil ainda desvendar o Eu. Sem compromisso algum, é isso que me interessa: como podemos ser tão frágeis a ponto que um só acontecimento traumático reverbere e desconfigure quem somos por inteiro? São os animais tão frágeis quanto nós? Estamos, atualmente, tão distantes da luta pela sobrevivência que ser obrigado a passar por algo que esfarela as obviedades da experiência existencial humana representa, ora, um não-lugar. O distanciamento entre quase morrer e morrer de fato não é tão distante assim. Se o pós-morte é obscuro, inalcançável, indecifrável, o que acontece com a psique após superar uma morte que deveria ser óbvia, um sofrimento físico e mental de um quase-ir-embora-para-sempre é tão misterioso quanto. A vida de um Eu transformada a partir do encontro radical com um Outro — é na subjetividade da (sobre)vivência que a ciência se extrapola.


Para os sortudos, a iminência da morte passa despercebida no dia-a-dia. É isso que digo quando me refiro ao que é óbvio. Nossas dificuldades de sobrevivência são sempre renovadas, quase não-naturais de tão distantes do que um urso, por exemplo, precisa enfrentar para sobreviver nas florestas. Em quartos revestidos de papel de parede do Pocoyo, criamos nossos recém-nascidos com todo o cuidado do mundo para que não caiam do berço, não engulam tampinha de metal, não sintam fome a ponto de definhar. Precisam sobreviver à inesgotabilidade dos desejos e à liberdade traiçoeira. Longe dos pais, na escola, vão entender o que é uma selva durante as aulas de ciências mas também durante os recreios. O perigo que é trazer metáforas do mundo animal para a experiência humana, uma linha tão tênue, permite a tentativa de reconectar com o que está por trás da fila da cantina, das faltas no futebol, das exclusões e inclusões que nossas crianças passam por serem iguais e diferentes umas das outras. 

Só os humanos dão tamanha importância ao que os outros pensam deles. Viver na floresta é um pouco isso: ser um vivente em meio a tantos outros, oscilar com eles.

Um terço dos ursos morre durante o seu primeiro ano de vida. Existem apenas oito (8) espécies no mundo todo, seis delas em risco de extinção. Existem duzentas e vinte e três (223) nacionalidades contabilizadas. A apatridia é um dos principais problemas do direito internacional. Um sujeito sem nação, algo concebível apenas a partir da experiência humana pautada em significantes, é um sujeito com identidade insuficiente em termos sociopolíticos, pois seus direitos ficam inacessíveis. Quem transgride as identidades padrões, seja qual for, corre o risco da zona fronteiriça entre o óbvio e o não-lugar.

Sem o desprendimento do ocidentalismo e do antropocentrismo, suspeito ser impossível entender o que acontece com uma intelectual que não apenas sobrevive ao ataque de um urso, como precisa viver após isso. Após todo o trauma, os hospitais russos e franceses, os procedimentos médicos de tira-e-coloca o maxilar no lugar, o conforto da família e o chamado da solidão como parte do processo de cura, fica o sentimento de que é inevitável que Nástia precise retornar às montanhas de Kamtchátka, porque só assim para destrinchar o urso dentro de si e respeitar o novo estado de existência irretornável e não-óbvio de uma miêdka. Só assim para fazer ciência, só assim para potencializar o que viveu dentro e fora das passagens literárias desestruturantes. Só assim para acontecer o encontro com a fera enclausurada, antecedente à linguagem. Escutar as feras não é apenas ouvir, mas sim compreender. Não uma tarefa dos ouvidos, mas das mentes abertas. Só assim para escrever.

lenio carneiro jr
é internacionalista e escritor.