listas
as favoritas de 2020
uma seleção das leituras mais interessantes publicadas, traduzidas ou reeditadas ao longo do ano
11 minutos de leitura
a alma perdida
olga tokarczuk & joanna concejo
Era uma vez um homem que trabalhava muito e quase não prestava atenção no tempo que passava diante de seus olhos… Este é um livro ilustrado sobre nossos modos de produção podem nos levar a estar em diversos lugares ao mesmo tempo. O corpo aqui, fixo numa dura cadeira de escritório. A alma, longe, talvez permanentemente perdida.
Em um ano em que o trabalho se reorganizou e dividiu o espaço com demandas do lar, passamos a ser sufocados pelo desejo de economia e pela ausência de saúde. Uma história como essa (escrita pela ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2018, Olga Tokarczuk) nos leva a refletir como estruturamos nossas rotinas e para onde estão indo nossas prioridades. Onde investimos nosso tempo? Por onde tem passeado nossa alma? Recomeçar o ano pode ser uma oportunidade de unirmos todos os nossos relógios em um corpo só.
tradução de gabriel borowski publicada pela todavia livros.
a casa
chico felitti
“A casa” é uma investigação jornalística que apresenta os passos de João Teixeira de Faria, vulgo João de Deus, da sua instalação de sua seita no interior de Goiás, apresentando como se deu sua inserção no turismo espiritual, até o ano de 2019, meses após uma série de denúncias de ter chegado à mídia hegemônica.
Indo além das denúncias de abuso sexual, Chico Felitti aborda neste livro-reportagem as relações políticas de João de Deus com os poderes do estado e de Brasília, mostrando que um grande aparato acobertava as atividades da seita em Abadiânia, minimizando acusações diversas, de contrabando de urânio a cemitério clandestino. Faz pensar num cenário político nacional, onde as discussões são influenciadas por crenças fajutas e gurus e estruturas religiosas sustentam campanhas e partidos.
publicado pela todavia livros.
as sobras de ontem
marcelo vicintin
Em seu romance de estreia, Marcelo Vicintin expõe a ética e estética da classe alta, intercalando relatos de duas personagens: uma jovem conta sua trajetória de ascensão a qualquer custo, do deslumbramento infantil por uma bolsa de marca a noitadas bancadas por namorado que coleciona carros de luxo; um homem em prisão domiciliar após ser flagrado por uma operação policial organiza um grande jantar com amigos antigos em memória dos bons tempos — ou o que sobrou deles. Um livro sobre vaidade enredado num jogo de espelhos.
“As Sobras de Ontem” apresenta com maturidade essa classe de pessoas que sabe construir imagens de desejo, se enclausura em rótulos caros e tenta espantar o tédio acumulando o máximo de objetos, eventos, acontecimentos possíveis, mesmo que tudo seja esvaziado de sentido logo em seguida, mesmo que tudo seja superficial ou efêmero. Combina muito bem com as dinâmicas de ver e ser visto que rondaram um 2020 dentro de casa e das redes sociais — já dizia o mergulhador: profundidade demais estoura os tímpanos.
publicado pela companhia das letras.
canções de atormentar
angélica freitas
Da infância no Sul do Brasil à urgência dos tempos presentes, este é um livro sobre nostalgia, às vezes inofensiva, às vezes violenta. Sobre sentar para tomar um café e não querer mais nada. Sobre deixar a própria casa entendendo que a volta não existe. Sobre se lembrar de quando leu uma poeta transgressora pela primeira vez e pôde mudar de sonho.
Quando a colher cai da boca é que a poesia se torna necessária aqui dentro. Angélica Freitas captura em seus poemas os últimos anos de um Brasil desiludido, que tenta superar o passado, mas ainda se prende nas memórias do pé de araçá. Por meio de uma escrita irônica e feroz, mistura referências diversas da cultura pop, do noticiário e das artes clássicas, para narrar cenas e flashes desses tempos agridoces. Em destaque, a parceria com Juliana Perdigão. Original e único, “Canções de atormentar” certamente deixou um marco nesse ano que, assim como o Brasil, não passou de um projeto.
publicado pela companhia das letras.
capão pecado
ferréz
Esta é a história de muita gente: jovens que não encontram empregos por morarem num bairro sem fama, garotos que conhecem a violência na porta de casa, crianças que têm contato com o mundo adulto cedo demais. Em Capão Pecado, experiências diversas da vida numa favela são apresentadas, do primeiro amor juvenil à perda do primeiro emprego, do sonho com os estudos à entrada no tráfico. Um mosaico de personagens e linguagens que cativa, fascina e, sobretudo, emociona.
Reeditado agora, vinte anos após o lançamento, a obra continua relevante: ainda há Capão Pecado em 2020. É possível perceber que as relações entre desigualdade, racismo e criminalidade permanecem críticas na sociedade e adicionar novas camadas com discussões popularizadas recentemente, como masculinidade tóxica e saúde mental. Para além do texto, é interessante comparar os contextos e notar como Ferréz abriu caminhos para outros escritores que nasceram em periferias.
reedição pela companhia das letras.
cidades afundam em dias normais
aline valek
Há dezesseis anos, uma cidade no cerrado afundou para o fundo de um lago. Agora, com o agravamento do período de seca, as águas recuaram e seus moradores podem voltar a viver no lugar. Neste romance, Aline Valek nos apresenta Kênia, uma fotógrafa que retorna a sua cidade natal para fotografar as ruínas. Entre prédios e ruas, lembranças da sua juventude são inevitáveis. Mas como enxergar um passado real entre os destroços se até suas memórias parecem distorcidas por uma lente grande angular?
O que faziam os moradores da cidade inundada enquanto aquele pequeno apocalipse se aproximava? Os moradores de Alto do Oeste achavam que estava tudo normal e só perceberam que suas estruturas se moviam pouco a pouco quando chegaram a um ponto sem volta, expulsos pelas águas e obrigados a abandonar a cidade. Acompanhar essa história é como ver uma versão micro do Brasil 2020, entre pessoas vivendo em condições insalubres, mudanças climáticas, o abandono do poder público, feridas da colonização se sobrepondo e gente tão acostumada a perder que nem grita mais.
publicado pela rocco.
corpos secos
Nesta distopia, a disseminação de agrotóxicos desenvolve uma doença que cria os “corpos secos”, mortos-vivos que atacam os poucos sobreviventes que restam no país. Em capítulos intercalados, acompanhamos alguns personagens cruzando o país para garantir a segurança em ilhas isoladas socialmente do vírus: uma criança e seu peixe de estimação, um paciente assintomático, dois irmãos gêmeos, uma fazendeira. Mais do que uma história pop de viagens, zumbis ou apocalipse, temos aqui um romance sobre perda, perseverança e maturidade.
Imagine um Brasil assolado por uma epidemia (risos): neste romance, acompanhamos perspectivas possíveis de um caos sanitário, observando diferenças e semelhanças entre o que vivemos neste ano, como a corrida pela cura, as informações desencontradas, o discurso religioso, os recursos escassos, o país sem governo e lei, o jeitinho brasileiro de ser egoísta… Tudo lembra o que vivemos, em especial pela relevância que a comunicação, a ciência e a criação de laços adquirem nas trajetórias dos quatro protagonistas.
publicado pela alfaguara.
j. d. salinger
Este volume de duas novelas encerra a publicação das novas traduções de J. D. Salinger no Brasil, apresentando novos causos da família Glass. Um casamento que não aconteceu. Desconhecidos dividindo uma carona. Laços rompidos pela distância. Uma aparência física desafiadora. Efeitos do pós-guerra no cotidiano familiar. Narradas por Buddy, as histórias tentam apresentar a vida e a personalidade de Seymour, mas o mistério persiste e escapa da narração.
Existe muito de tristeza no sentimento de que se é único no mundo e Salinger consegue manipular essa sensação muito bem para construir cada membro da família Glass. Nesse livro, em “Franny & Zooey” e em “Nove Histórias”, temos acesso a contos que falam sobre o quanto de solidão e inadequação pode haver nas dinâmicas familiares. Tem relevância a leitura nesse ano em que conviver foi um desafio tão grande quanto encontrar um sentido espiritual para a vida ou entender com o peito o ofício de escritor.
tradução de caetano w. galindo publicada pela todavia livros.
bernardine evaristo
Depois de viver décadas à margem do sucesso, ouvindo chamarem suas histórias com protagonismo negro de “radicais” ou “impopulares”, a dramaturga Amma é absorvida pelo mercado e estreará uma peça num dos maiores teatros da Inglaterra. Esse é o mote que reunirá doze personagens diversas, entre espectadoras e amigas da diretora da peça, de idades e origens diferentes. Dessas vidas, que se cruzam e se afastam na violenta sociedade pós-Brexit, saem reflexões sobre raça, maternidade, auto estima, amor, arte, sexualidade, identidade, política e, sobretudo, como as coisas se transformam com o tempo.
Se o espaço público parece hostil com a diversidade, a literatura pode se tornar uma forma de viver juntos. Neste livro, por meio de vozes diversas e experiências inventivas com a linguagem, Bernardine Evaristo constrói um modo de superar o isolamento, diminuir distâncias, atravessar barreiras. Compartilhando vivências é possível imaginar futuros menos violentos, onde as necessidades de múltiplas pessoas possam ser reconhecidas, ouvidas, atendidas.
tradução de camila von holdefer publicada pela companhia das letras.
morte na floresta
aparecida vilaça
Como uma doença cuja principal forma de prevenção é o isolamento social se inscreve em um povo cuja cultura não concebe a ideia de indivíduo? Mais do que um ensaio sobre a pandemia a partir do ponto de vista de uma pesquisadora da cultura indígena, Morte na Floresta mostra como diversos povos já vivem cinco séculos de epidemias severas que estão longe de acabar – das primeiras gripes nos anos 1500 à doutrinação protestante que invade aldeias.
Este ensaio deixa evidente como a questão indígena é uma das mais urgentes no Brasil atual e como ela não é tratada com a seriedade que necessita. Se as vítimas preferenciais do vírus são os idosos, que, dentro destes povos de tradição oral, são os guardiães dos mitos, das histórias, das canções, essas mortes são perdas irreparáveis para nossa memória ancestral, equivalem a incêndios em museus e bibliotecas onde nada pode ser reposto.
publicado pela todavia livros.
o avesso da pele
jeferson tenório
Após o pai ser assassinado numa abordagem policial, um homem resgata objetos que ajudam a entender, recuperar e inventar quem foi ele. Jeferson Tenório apresenta um protagonista negro, mas escreve a história de milhares de pessoas para as quais a vida sempre foi áspera, mesmo que alcancem status e profissões de sucesso. Um livro sobre gente que se esquece que pode chorar.
No ano que escancarou a violência policial, este é um romance para se instrumentalizar sobre tópicos geralmente debatidos de forma rasa: racismo estrutural, negritude e autoestima, solidão e sexualização da mulher negra, apropriação cultural, saúde mental, relacionamento inter-racial, feminismo negro… Vai ressoar dentro de pessoas pretas e explicitar mecanismos do racismo para pessoas brancas.
publicado pela companhia das letras.
sísifo
gregório duvivier & vinicius calderoni
Sobre o palco, um ator e uma rampa. O ator caminha da extremidade inferior à extremidade superior da rampa e, então, salta, recomeçando o mesmo traçado outra e outra e outra vez. Esta criação de Gregorio Duvivier e Vinicius Calderoni dá um frescor novo para o clássico onde o personagem carrega seus relacionamentos rápidos, as redes sociais, as notícias trágicas dos últimos anos até o topo da montanha, vê tudo rolar abaixo e recomeça a mesma tarefa indefinidamente. São sessenta cenas rápidas, inspiradas pelos memes e gifs animados e construídas com a linguagem da internet.
Todos os dias iguais: a quarentena transformou cada um no Sísifo de suas próprias vidas, condenados a reviver os mesmos cômodos, as mesmas lives, as mesmas refeições por delivery, as mesmas reuniões via zoom diariamente. O absurdo e a maravilha de estar vivo aqui e agora. Pensar a repetição das nossas existências é também uma forma de conferir sentido e atravessar. Só se tem o ponto de partida e o ponto de chegada: como se preenche esse percurso? Aliás, que dia é hoje? Salto. Blecaute.
publicado pela cobogó.
sol artificial
j. p. zooey
Depois do homem de barro, moldável e disciplinável, o homem líquido, programável. Neste volume de contos, o escritor argentino J. P. Zooey imagina um mundo em que nossos sentidos são criados e administrados por uma empresa de realidade aumentada. Neste universo, lemos entrevistas com especialistas em comportamento digital, filósofos das novas formas de existência, pensadores que tentam apreender um corpo que se esvai e se esparrama em informação, dados, bytes.
Se vivemos numa nova época de trevas, o sol deixou de dar forma ao mundo e foi substituído pelas luzes artificiais dos dispositivos eletrônicos. Como refletir agora as ideias de identidade, loucura, Deus, solidão, felicidade, genética, biologia, comunicação, segredo? Depois de um avanço significativo nas existências digitais da humanidade, com a popularização das compras online, dos filtros, do nomadismo e das transmissões ao vivo, é preciso pensar nosso lugar no mundo a partir de outras perspectivas, outros espelhos que nos ajudem a recompor o disperso e deter o infinito.
publicado pela dba editora.
UM OUTRO BROOKLYN
JACqueline woodson
Uma mulher que volta para o bairro onde nasceu e precisa encarar as feridas que a fizeram fugir anos atrás: essa premissa já foi repetida em inúmeras obras, mas nunca de forma tão sensível. Uma escrita onírica e sensível para tratar de raça, desigualdade e sororidade.
Este foi um ano onde o lar se tornou um nó na garganta de muita gente. Um espaço que dizem que devemos amar, mas onde nem sempre pertencemos. “Um Outro Brooklyn” é uma história para pensar essa relação entre comunidade e individualidade por meio da memória.
tradução de stephanie borges publicada pela todavia livros.
Uma boneca russa de isolamentos: a quarentena do parto dentro da quarentena da pandemia. Anna Virginia Balloussier abriu seu diário e expôs um dos relatos mais interessantes e originais da vivência em 2020, que começa logo após a chegada de Violeta à casa. Mesmo apresentando uma realidade privilegiada, o isolamento em um apartamento num bairro famoso do Rio de Janeiro, é possível criar conexões entre “Talvez ela não precise de mim” e as dificuldades que muitas outras mães passaram nestes tempos: os apertos no peito, a criação de novas rotinas, a reconquista da sexualidade, as inseguranças com o corpo. O maternar escrito com sinceridade pungente.
Se existiu receio com os anos subsequentes para o cidadão médio, imagine para quem viveu este ano com um bebê recém-nascido. Este diário de 80 páginas, que contempla os meses de março e abril de 2020, está cheio de entradas jocosas para quem o lê com a ciência de tudo que aconteceu depois. Entre as falas desbaratadas do presidente, a obsessão com álcool em gel e o sonho com uma quarentena bem feita, as sensações do puerpério. Um livro que nina seu medo do futuro.
publicado pela todavia livros.